sábado, 12 de junho de 2021

Bula “Unam Sanctam”, de Bonifácio VIII


Bonifácio, Bispo, Servo dos servos de Deus. [*]

Para perpétua memória da coisa.

1. Una, Santa, Católica e Apostólica é a Igreja que, urgidos pela fé, somos compelidos a crer e a professar, e nela firmemente cremos e ela com simplicidade confessamos, fora da qual não há salvação, nem remissão dos pecados, como o Esposo no Cântico proclama: “Porém uma só é a minha pomba, a minha perfeita, ela é a única para sua mãe, escolhida pela que lhe deu o ser” [1]; a qual representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo, e a [cabeça] de Cristo é Deus [2]. Na qual há um só Senhor, uma só fé, um só batismo [3]. Com efeito, [apenas] uma foi a arca no tempo do dilúvio, prefigurando a única Igreja, que foi consumada com um côvado [4]; teve sem dúvida um único timoneiro e guia: Noé; fora da qual toda a subsistência sobre a terra, como lemos, foi destruída.

2. Esta única [Igreja] veneramos, como disse o Senhor pelo Profeta: “Livra, ó Deus, minha alma da espada; das garras dos cães a minha única” [5]. Orou por sua alma, isto é, por si mesmo, simultaneamente cabeça e corpo, o qual corpo [ele] chamou única, a saber, a Igreja, por causa da unidade do esposo, da fé, dos sacramentos e da caridade [próprios] da Igreja. Esta é aquela túnica sem costura do Senhor, que não foi rasgada, mas sobre a qual foi lançada sorte [6].

3. Portanto, desta una e única Igreja só há um corpo e uma cabeça — não duas cabeças, como um monstro —, a saber, Cristo, e o vigário de Cristo, Pedro, e o sucessor de Pedro, como disse o Senhor ao próprio Pedro: “Apascenta as minhas ovelhas” [7]. “Minhas”, disse, em geral, não em particular “estas” ou “aquelas”, por onde se entende que lhe foram confiadas todas. Se, portanto, os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e a seus sucessores: é necessário que reconheçam não serem das ovelhas de Cristo, pois disse o Senhor em João ser um só rebanho e um só pastor [8].

4. As palavras do Evangelho nos instruem: há nesta [Igreja] e em seu poder dois gládios, a saber, o espiritual e o temporal. Porque, quando disseram os Apóstolos: “Eis aqui duas espadas” [9], ou seja, [aqui] na Igreja — dado que eram os Apóstolos falando —, não respondeu o Senhor “é demais” mas “basta”. Certamente, quem nega estar no poder de Pedro o gládio temporal atendeu mal à palavra do Senhor quando disse: “Põe o teu gládio na bainha” [10]. Ambos, pois, estão em poder da Igreja, ou seja, o gládio espiritual e o gládio material. Mas, de fato, este deve ser exercido para a Igreja, aquele, porém, deve ser exercido pela Igreja; aquele, pela mão do sacerdote; este, pela mão dos reis e cavaleiros, mas segundo a vontade e a tolerância do sacerdote.

5. É preciso, todavia, que um gládio seja subordinado ao outro gládio; e a autoridade temporal seja submissa ao poder espiritual. Porque, já que diz o Apóstolo: “Não há poder que não venha de Deus e os que existem foram ordenados por ele” [11], não seriam ordenados porém se um gládio não fosse subordinado ao outro gládio, e um, como inferior, não fosse reconduzido acima pelo outro. Porque, segundo o bem-aventurado Dionísio, é lei divina que as coisas ínfimas são reconduzidas acima por mediadoras.

6. Logo, segundo a ordem do universo, todas as coisas não são reconduzidas à ordem igualmente e imediatamente, mas as ínfimas por mediadoras, e as inferiores por superiores. É necessário, todavia, que nós confessemos muito claramente que o poder espiritual excede incomparavelmente em dignidade e nobreza o poder terreno, assim como as coisas espirituais ultrapassam as coisas temporais. O que vemos claramente também pelo pagamento dos dízimos, pelas bênçãos e santificações, pela própria recepção de poder e pelo governo das coisas mesmas. Porque, como a verdade o atesta, o poder espiritual pode instituir o poder terreno e julgá-lo se este não for bom. Assim se verifica a profecia de Jeremias sobre a Igreja e o poder eclesiástico: “Eis que te constituí hoje sobre as nações, e [sobre] os reinos” [12] e o resto que segue.

7. Logo, se o poder terreno se desvia, será julgado pelo poder espiritual; mas, se se desvia um poder espiritual menor, será julgado por seu superior; se, porém, o poder espiritual supremo se desvia, só por Deus pode ser julgado, não pelo homem, como testemunha o Apóstolo: “Porém o homem espiritual julga todas as coisas e ele não é julgado por ninguém” [13].

8. Esta autoridade, embora tenha sido dada a um homem e por um homem seja exercida, não é, todavia, humana, mas antes divina, dada a Pedro pela boca divina, e a ele e a seus sucessores firmada naquele [Cristo] que ele, a pedra, confessou, quando disse o Senhor ao mesmo Pedro: “Tudo o que ligares” [14], etc. Portanto, todo aquele que resiste a este poder assim ordenado por Deus, resiste à ordenação de Deus [15], a menos que imagine haver dois princípios, como Maniqueu, o que julgamos falso e herético, porque, como atesta Moisés, não nos princípios, mas no princípio Deus criou o céu e a terra [16].

9. Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos ser absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao Romano Pontífice.

Dado no Vaticano, no oitavo ano de nosso Pontificado [18 de novembro de 1302].




[*] Tradução segundo o texto latino do Corpus iuris canonici (1959) cotejado com o presente em The Vatican decrees in their bearing on civil allegiance (Manning). Paragrafação e itálicos nossos.

[1] cf. Ct 6, 8.

[2] 1 Cor 11, 3.

[3] Ef 4, 5.

[4] Gn 6, 16.

[5] cf. Sl 21, 21.

[6] cf. Jo 19, 23-24.

[7] Jo 21, 17.

[8] Jo 10, 16.

[9] Lc 22, 38.

[10] cf. Mt 22, 56.

[11] cf. Rm 13, 1.

[12] Jer 1, 10.

[13] 1 Cor 2, 5.

[14] Mt 16, 19.

[15] cf. Rm 13, 2.

[16] Gn 1, 1.