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sexta-feira, 30 de junho de 2023

O espectro do tradicionalismo oitocentista

(Texto revisado em 30 de outubro de 2023)

Pedro Valeriano


A pureza das intenções, a generosidade do coração, o ardor da eloquência, não substituirão jamais uma sólida doutrina.

Pe. Augustin Roussel


Os franceses são muito pouco argutos, e não conseguem ver erros comuflados. Se um satanista se apresenta a eles dizendo-se tradicionalista, aceitam-no. Sem perguntar qual seria seu tradicionalismo: o satanista.

Orlando Fedeli


A mudança que se operou em mim é totalmente diferente de como vós a imaginais. Minhas ideias, sempre as mesmas no fundo, se retificaram, se estenderam, se desenvolveram, só isso.

Lamennais




Sumário


Proêmio
Artigo I. Sobre o tradicionalismo do século XIX
  §I. Considerações sobre a França
  §II. Joseph de Maistre e as origens teosóficas do tradicionalismo
  §III. Louis de Bonald, da palavra à Política
  §IV. A coerência do tradicionalismo de Lamennais
  §V. Donoso Cortés, tradicionalista ou não?
  §VI. Alguns outros tradicionalistas
  §VII. O mistério da Revelação primitiva
  §VIII. A Igreja condenou o tradicionalismo revelacionista?
  §IX. a) Tradicionalismo e neotomismo
    b) Tradicionalismo e neotomismo no Brasil
  §X. Um quasi excursus sobre Charles Maurras
Artigo II. Considerações finais: a herança doutrinal do tradicionalismo nos séculos XX e XXI
  Parágrafo único




Proêmio [↵]


1. Nestes tempos de tintas apocalípticas — assim o Prof. Nougué costuma chamá-los —, é profunda a confusio linguarum que nos desorienta a nós católicos; mas é particularmente atordoante o caso das discussões em torno do que se costuma entender por “tradicionalismo”, como pretendo mostrar neste opúsculo.

Normalmente, não se deve perder muito tempo com o nome das coisas: de nominibus non est disputandum; contudo, a questão é de uma excepcionalidade tal, que me parece urgir uma investigação cuidadosa acerca do tradicionalismo — ou melhor, dos tradicionalismos. Se não, vejamos.

A palavra “tradicionalismo” pode ser entendida de diversos modos. Alguns dão-lhe o sentido de um simples apego às coisas tradicionais; outros querem com ela designar uma seita gnóstica; outros dela se servem para nomear o Catolicismo fiel à tradição litúrgica e doutrinal da Igreja; e há outros, ainda, que usam “tradicionalismo” no sentido de uma certa escola filosófica do século XIX (XVIII e XIX, mais precisamente), etc., etc., ad nauseam: simplificadamente, ou más doutrinas, ou doutrinas com mau nome.

Até aqui, nada de novo debaixo do sol; mas eis que as coisas começam a agravar-se: hoje, quase todos os sentidos de “tradicionalismo” se confundem de algum modo, e então têm-se católicos fideístas, católicos gnósticos, católicos milenaristas, e católicos católicos, todos frequentemente confundidos uns com os outros, não só pelos adversários da Religião mas também por si mesmos: o tradicionalista (católico tradicional) se vale frequentemente de autores tradicionalistas (do século XIX) que também inspiram de algum modo os tradicionalistas (perenialistas); o tradicionalismo (perenialista), por sua vez, há algumas décadas, e com sucesso, tem se infiltrado nos meios tradicionalistas (católicos), induzindo muitos tradicionalistas (católicos) ao erro. Como se vê, o nome “tradicionalismo” para designar o Catolicismo fiel à tradição litúrgica e doutrinal da Igreja, doravante “Catolicismo tradicional”, encerra não poucos problemas.

Há que mencionar, ainda quanto ao nome, outro inconveniente: a Tradição não é senão a regra remota da fé; sua regra próxima é o magistério eclesiástico — infalível ou não! Alguns católicos, no entanto, cometem o grave erro de dar à Tradição o primado em questões que não cabem a ela, mas ao magistério. São os chamados “tradicionalistas críticos” [1]. O nome “tradicionalismo”, para referir-se ao Catolicismo tradicional, não raro conduz a este erro.

Abra-se um breve parêntese. Há certa tendência, algo rasteira, entre alguns católicos liberais, de dizer que o “lefebvrismo” é o tradicionalismo do século XIX com outra roupagem… Nada mais falso e preguiçoso. O tradicionalismo “romântico” muito pouco tem de tradicional; é um sistema moderno que encerra más novidades tanto filosóficas quanto teológicas, que — por surpreendente que possa soar — pode conduzir ao liberalismo, ao milenarismo, ao ecumenismo e a outros erros que Mons. Lefebvre combateu e que os católicos tradicionais seguem combatendo. O “lefebvrismo” não é um apego romântico a tradições causado pelo “medo das mudanças do mundo moderno”. Em verdade, pensar que o seja é ter uma visão equivocada, não só do “lefebvrismo”, como também do tradicionalismo do século XIX. Ademais, se há “lefebvristas” que ainda difundem o pensamento e as obras tradicionalistas, é preciso dizer que de certo modo eles estão nos antípodas do “lefebvrismo” — que, em Filosofia e em Teologia, sempre quis ser tomista. Fim do parêntese.

A esses eu poderia acrescentar ainda outros inconvenientes. Se, portanto, o nome é tão problemático, parece-me que os católicos tradicionais devemos ao menos empregá-lo com cuidado: 1) porque supõe, ou favorece, uma visão perigosamente equivocada acerca das relações entre a Tradição e o magistério eclesiástico; 2) porque faz confundir com outras acepções perigosas: do tradicionalismo oitocentista e do tradicionalismo perenialista, por exemplo.

2. Não é minha intenção propor um nome melhor. Se há necessidade, e se for viável, peço que pessoas mais competentes do que eu o façam. O escopo deste modesto trabalho é, antes de tudo, historiográfico. Aqui, minha intenção é trazer à tona uma parte às vezes negligenciada da História do pensamento: o tradicionalismo.

O procedimento que me pareceu mais adequado consiste em uma simples exposição cronológica das ideias tradicionalistas, autor por autor (porque a variedade do pensamento tradicionalista impede que se lhe conceda uma exposição global satisfatória), começando por De Maistre para ir até suas manifestações mais recentes e esotéricas nos perenialistas, passando por autores de algum modo vinculados à “escola” tradicionalista, como Veuillot (1813 – 1883) e outros, sobre os quais boa parte das melhores obras da historiografia filosófica é omissa; dar-se-á, ainda cronologicamente, uma palavra sobre as diversas ocasiões em que a Igreja condenou o tradicionalismo, e também serão abordadas as relações deste com o neotomismo, para depois tratar do tradicionalismo no Brasil. Alguns outros assuntos, tais como o chamado “tradicionalismo hispânico”, a Action Française, e o milenarismo, serão abordados incidentemente. (Note-se que o tratamento que será dado aos autores que não fazem parte da escola tradicionalista do século XIX terá menor profundidade.)

3. São muitas as dificuldades que surgem. Em que sentido, por exemplo, De Maistre pode ser considerado tradicionalista? Alguns historiadores da Filosofia o colocam entre os tradicionalistas, mas não raro deixam de dizer satisfatoriamente o porquê. Outra: colocar o tradicionalista De Maistre ao lado do tradicionalista Guénon (1886 – 1951) não parece demasiado? Parece, a princípio, uma confusão grosseira entre duas doutrinas que só têm comunidade de nome. Ademais, quem seria capaz de desconfiar da doutrina de um polemista católico tão importante como Louis Veuillot?

Pode ser que alguém argumente a favor das boas intenções deste mesmo Veuillot, ou de um De Bonald (1754 – 1840), ou de um Ventura (1792 – 1861) [2]. Em verdade, é muito provável que tenham tido mesmo boas intenções e que quisessem sinceramente defender a Igreja; no entanto, é mais do que certo que eles não eram tomistas, e não poucas vezes se serviam da Filosofia moderna em suas obras, razão por que são perigosas em alguma medida:

Um dos traços da sabedoria dos Romanos, diz-nos Montesquieu, estava no imitarem eles as armas dos inimigos, quando as julgavam superiores às suas. Assim fizeram desde as primeiras guerras com os Samnitas e assim puderam vencer esse povo belicoso.
Às vezes, entretanto, nesse emprego de novas armas está um motivo de enfraquecimento. As concessões ao erro ou os meios inadequados de combatê-lo podem conduzir irremediavelmente à derrota.
Pensando salvar de suas vacilações a Filosofia, mediante nova e segura base, e assim oferecer à fé um apoio indestrutível, fez Descartes exatamente o contrário. Com intenções dogmáticas, aplainou o caminho para o subjetivismo.
De boas intenções estavam cheios o fideísmo de Huet e o tradicionalismo de Bonald, e sabemos no que foram dar [3].

A isso podem acrescentar-se as seguintes palavras de Paulo Miranda e de Orlando Fedeli:

Ora, quem conhece o caminho certo e direto, não toma atalhos duvidosos. Quem tem guias seguros não pede orientação a condutores cegos ou míopes, que podem levar ao abismo ou a lugares incertos. Quem possui um tesouro não se contenta com migalhas.
Por isso, agiria muito tolamente quem, em meio à selva da dúvida, dispondo de condutores seguros para conduzi-lo à clareira da verdade, adota cegamente mestres de duvidosa ortodoxia — ou, muitas vezes, de indubitável heresia —, atraídos quiçá pela beleza de sua linguagem ou pelo fulgor de inteligência com que expõem suas idéias, tantas vezes falsas [4].

Sem dúvida, o assunto é espinhoso, e seu tratamento é sumamente exigente em profundidade e em erudição — duas coisas de que não disponho; no entanto, pareceu-me um dever, pela urgência da matéria, apresentar os resultados de minha investigação em seu estado atual.

Não se pretende, por ora, proceder a uma refutação destas doutrinas; ademais, é preciso dizer que a razão que me leva a escrever este opúsculo é dar uma modesta contribuição no sentido de desfazer algumas confusões que grassam em ambientes católicos e no sentido de incentivar o esforço de recuperação e de cultivo do tomismo de Santo Tomás. Não me move nenhuma animosidade contra ninguém, nem com este trabalho tenho intenção de caricaturar os autores de que tratarei; tampouco desejo menosprezar o edificante e admirável esforço destes homens (refiro-me a alguns tradicionalistas católicos e aos neotomistas), que, em uma época dificílima, foram incansáveis na defesa da Igreja, da qual eram filhos sinceramente devotos.

Se este trabalho surtirá algum efeito prático, isto não tenho condições de saber; todavia, não devemos dar as costas para os perigos que alguns tradicionalismos encerram, porque não são poucos estes perigos, e eles, os tradicionalismos, permanecem vivos no âmbito do Catolicismo tradicional — e disto estou cada vez mais convencido.


Artigo I
Sobre o tradicionalismo do século XIX
§I
Considerações sobre a França [↵]


4. É comum pôr nas origens da Revolução Francesa o virulento enciclopedismo dos philosophes: Voltaire (1694 – 1778), Diderot (1713 – 1784), D’Alembert (1717 – 1783), Lamettrie (1709 – 1751), D’Holbach (1723 – 1789) são alguns dos nomes normalmente mencionados. Em geral, esta corrente se caracteriza por um espêsso materialismo e por um descabido otimismo gnosiológico. Sem dúvida, esta forma de racionalismo que foi o enciclopedismo exerceu papel importantíssimo no contexto da referida revolução, e não é impossível que a maior parte dos revolucionários tenha pertencido a esta corrente; contudo, não se pode ignorar que, no interior mesmo da revolução, um racionalismo tão grosseiro e extremado haveria de provocar uma reação (que, no caso, foi igualmente grosseira e extremada): trata-se do antirracionalismo que parece encontrar em Rousseau (1712 – 1778) seu representante. É preciso dizer, porém, que o conflito entre essas duas correntes, uma racionalista e outra antirracionalista, não é restrito ao século da Revolução de 1789, nem é exclusivamente francês. Em verdade, avançando ou recuando na história da Filosofia, desde o fim da Idade Média é o mesmo conflito que se observa: racionalismo contra antirracionalismo [5]. No contexto do ancien régime, a ambivalência doutrinal que se verificava no seio das lojas maçônicas permite que o vejamos com maior clareza: “[A Maçonaria] oferecia a seus adeptos a filosofia das luzes, mas ela também abria de par em par as rotas do ocultismo e do misticismo” [6]. Assim, era natural que as disputas internas e as cisões ocorressem entre os maçons, e mesmo ali dentro pelejassem racionalistas e antirracionalistas. Por um curto período, as várias correntes maçônicas antagônicas se unirão para levar a efeito a Revolução; depois, voltarão a se separar; mas falar sobre a Maçonaria é sempre um problema: a bibliografia é extensíssima e não parece haver consenso sobre quase nada. O que hoje se escreve sobre ela, amanhã talvez pareça impreciso. Voltemos, pois, à Filosofia.

No período que se seguiu à Revolução, racionalismos e antirracionalismos permanecem em conflito. A rigor, “racionalismo” e “antirracionalismo” são termos que se referem a posturas gnosiológicas, uma “otimista” e outra “pessimista”. O tradicionalismo do século XIX, que em todas as suas formas exagera as fraquezas da razão humana, pode perfeitamente ser colocado entre os sistemas antirracionalistas. Sobre ele, vejamos o que disse o Pe. Sauvage:

Quando recolocado em seu contexto histórico, o tradicionalismo se apresenta claramente como uma reação e um protesto contra o racionalismo dos filósofos do século dezoito e [contra] o individualismo anárquico da Revolução Francesa. Contra esses erros, [o tradicionalismo] indicou e enfatizou a fraqueza e a insuficiência da razão humana, a influência da sociedade, da educação e da tradição para o desenvolvimento da vida humana e das instituições. A reação foi extrema, e caiu no erro oposto [7].

E quanto às tendências políticas da época, disse muito acertadamente Mesquita Pimentel:

Duas poderosas tentações se apresentaram aos homens desse tempo. Uma, que constituiu o liberalismo, foi considerar irreversível e incorrigível a obra da Revolução, identificá-la com o progresso, a civilização, o bem da humanidade, e, por conseguinte, pleitear como benéfica e necessária a sua aceitação, aprovação e adoção pela Igreja. A outra tentação, contrária a essa, foi acorrentar a democracia à Revolução, condenar em absoluto a forma de governo que tivera origem em tão cruenta desordem e, em reação, identificar o bem público com o regime monárquico e pretender que a Igreja só a este considerasse legítimo e digno de apoio. A essas duas tentações sucumbiram muitos católicos da época [8].

Isso tudo é verdade, e essas citações nos ajudam a discernir, no século XIX francês, a existência de duas correntes contrárias; mas o conflito entre elas não se limitava a discussões acerca do conhecimento humano, como se pôde ver. Podemos, portanto, ir além daquelas duas posturas gnosiológicas e dizer que cada uma delas é produto de uma tendência mais ampla, de um espírito, por assim dizer. Pois bem, se se quer compreender mais profundamente o espírito que anima a corrente antirracionalista, e, consequentemente, o tradicionalismo, é útil recuar alguns séculos, até ao “misticismo esquisito” do Mestre Eckhart O.P. (1260 – 1328) — assim o chamou o Pe. Hugon O.P. Em verdade, Eckhart é “o grande metafísico da gnose”, segundo a expressão do Pe. Méramo.

5. A questão da ortodoxia de Eckhart é motivo de numerosas disputas. Se alguns sustentam que não existe no Mestre Eckhart um idealista alemão avant la lettre [9], há, por outro lado, quem diga o contrário, o que me parece mais razoável. Bréhier, por exemplo, chega mesmo a sustentar que em Eckhart se encontra “a verdadeira origem da especulação metafísica alemã” [10]. É verdade que há certos autores que não parecem convencer-se da heterodoxia do Mestre Eckhart diante da condenação, pelo Papa João XXII na bula In agro Dominico (1329), de dezenas de proposições suas como heréticas, e algumas outras como suspeitas de heresia [11]. Muitos, ainda, chegam a sustentar a enormidade de que não há na bula nenhum fundamento filosófico-teológico que justifique a condenação das proposições eckhartianas, e não raro se recorre ao enfadonho truque de dizer que por trás de tal condenação havia, em verdade, apenas motivos políticos. Por muitas razões, trata-se de uma posição insustentável. (Questionar condenações é um tique acadêmico antigo; muitos católicos o têm.) Parece claro, por exemplo, que o Meister propugnava teses heterodoxas quando dizia, por exemplo, que a perfeição consiste em que o homem transcenda, nas relações para com Deus, sua condição de criatura, interiorizando-se até ao fundo sem fundo da própria alma, até à centelhazinha, onde o humano e o divino se identificam [12]: “Aqui, o fundo de Deus é o meu fundo, e o meu fundo é o fundo de Deus” [13]. Ora, isto é gnose.

Estas e outras estranhezas que se encontram em Eckhart — mas que, importa dizer, são muito mais antigas do que ele — prosseguirão, de algum modo (!), através de seus discípulos Tauler O.P. (1300 – 1361) e Suso O.P. (1295 – 1366), de Ruysbroeck (1293 – 1381), e de Tomás de Kempis (1380 – 1471); através, igualmente, de Nicolau de Cusa (1401 – 1464) e de diversos outros autores da época. Muito importante também será o sapateiro Böehme (1575 – 1624), teósofo dissidente do luteranismo oficial, e depois Baader (1765 – 1841), seu grande divulgador na Alemanha; e, influenciado por Baader, todo o romantismo alemão. Baader, por sua vez, sofrerá bastante a influência tanto do teósofo Saint-Martin (1743 – 1803) — tradutor e grande divulgador de Böehme na França, e muito admirado por Joseph de Maistre, que por sua vez, segundo alguns autores (mas isto me parece discutível), foi o grande divulgador do martinismo na Rússia —, quanto de Sailer (1751 – 1832), figura importante no caso de Clemens Brentano (1778 – 1842) e de Anna Katharina Emmerick (1774 – 1824), “vidente” romântica muito lida pelos católicos [14]: estamos no século XIX, e é o século do romantismo [15].

Este rápido e grosseiro esboço da história desta corrente (se assim me é permitido chamá-la) não demonstra, é verdade, nenhum vínculo estritamente doutrinal entre os autores mencionados, e é preciso dizer que em muitos casos há, no interior mesmo desta corrente, posições profundamente conflitantes. Por isso se fala de certa tendência, de certo espírito mais ou menos desesperado da inteligência humana e inclinado ao misticismo em sentido impróprio — e esse espírito não é o espírito dos Doutores católicos.

6. Como já se disse, o tradicionalismo, fruto daquele espírito, é uma reação ao racionalismo — reação a cujas origens alguns autores acertadamente associam o nome de Rousseau: tanto De Maistre quanto De Bonald, por exemplo, em alguma medida se inspiram, um pouco paradoxalmente, em Rousseau. Para os tradicionalistas, a Revolução Francesa foi produto da Filosofia, e de fato aquela se fez em nome da Filosofia; por esta razão não se trata mais de propor um novo sistema filosófico antirracionalista, mas de denunciar a própria Filosofia enquanto atividade autônoma, e consequentemente denunciar a razão individual. Conforme põe o Cardeal Mercier, à falsa afirmação de que o indivíduo isolado pode tudo e de que a sociedade não lhe presta para nada, os tradicionalistas não responderão com a contraditória “O indivíduo não pode tudo, e a sociedade é parcialmente responsável pelo que ele é”, mas com a contrária “O indivíduo sem a sociedade não pode nada, e tudo o que o mesmo indivíduo é intelectualmente e moralmente ele o deve a ela”. É preciso, por conseguinte, fiar-se na autoridade da razão geral, de que a Revelação primitiva feita a nossos primeiros pais — da qual de algum modo participam todos os homens de todos os tempos e de todos os povos — é o conteúdo; a inteligência, por si mesma, não é capaz da verdade, e os grandes filósofos pagãos não fizeram senão “recordar-se” imperfeitamente de verdades reveladas. Ora, da universalidade desta tradição primitiva à prescindibilidade da Tradição apostólica é um passo não muito difícil de dar. Dá-lo-á Lamennais (1782 – 1854) de certa maneira, e aí está a razão, poder-se-ia dizer, pela qual o último Lamennais está virtualmente contido no primeiro: a “Humanidade”, disse um autor, correspodia muito melhor à ideia que Lamennais tinha da Igreja.

Pois bem, se a verdade só se encontra nesta tradição conservada mais ou menos fielmente pelos diversos povos, é natural que os autores se dediquem ao cultivo da História: “Começa-se agora a compreender que a Religião repousa inteiramente sobre a tradição, quer dizer, sobre a história, e não sobre o raciocínio”, disse Bonnetty em apresentação a um texto sobre a Filosofia da História escrito pelo romântico Friedrich Schlegel (1772 – 1829), traduzido e publicado na revista que o mesmo Bonnetty dirigiu por longos anos [16]. Dessa maneira de ver as coisas decorre uma forma de Apologética que privilegia a História em detrimento da Filosofia e da Teologia: Mons. Gaume e o Pe. Rohrbacher, por exemplo, parecem tê-la praticado em alguma medida. Agora a Apologética — que chegou a ser chamada de “extrinsecista”, porque tende a priorizar os efeitos exteriores da Religião — passa igualmente a preocupar-se em demonstrar que o Cristianismo é o sustentáculo natural da estabilidade política, econômica e social [17].

A menção a Schlegel, que foi um dos fundadores do romantismo alemão (e o romantismo alemão deu origem a todos os outros romantismos), e as demais menções ao romantismo não foram gratuitas: já temos condições de dizer que entre o tradicionalismo e o romantismo em seus diversos aspectos há mais de um ponto de contato — ainda que somente em sentido largo o tradicionalismo possa dizer-se “romântico”. Menciono muito de passagem apenas um desses pontos de contato: românticos e tradicionalistas aspiram sempre a uma absoluta “unidade”; neste sentido, vejamos o que disse De Maistre na décima soirée:

O sistema de Malebranche sobre a visão de Deus nada mais é do que um magnífico comentário destas palavras tão conhecidas de São Paulo: É nele que nós temos a vida, o movimento e o ser. O panteísmo dos estoicos e o de Espinosa são uma corrupção desta grande ideia; mas é sempre o mesmo princípio, é sempre esta tendência para a unidade [18].

Em verdade, muitos passos com este sabor “unitarista” poderiam ser extraídos, não só das obras do Saboiano, como também de outros escritos tradicionalistas; há uma sorte de “paixão mística pela unidade”, para empregar a expressão que Paulhan usou em seu estudo sobre De Maistre [19]. Eis, novamente — e este é o sentido das comparações entre tradicionalistas e românticos —, aquela tendência ao “misticismo” e aquele “irracionalismo”, tão presentes nas obras tradicionalistas; daí que o personalista Jean Lacroix tenha dito (um pouco apaixonadamente) que o tradicionalismo não é senão um “não pensamento” ou “contrapensamento”. Aí talvez esteja, ainda segundo Lacroix (e ainda um pouco apaixonadamente), a fonte mais profunda da fraqueza do tradicionalismo: em vez de ser a consequência natural da velha França, foi a negação da nova França; em vez de ser autenticamente tradicionalista, foi artificialmente reacionário; em vez de promover um renascimento, pretendeu operar uma restauração. Se forçarmos um pouco a benevolência com respeito a estas palavras de Lacroix, seu julgamento parecerá justo (ainda que “não pensamento” seja demasiado), mas é preferível dizer que a fonte mais profunda da fraqueza dos tradicionalistas — ao menos por certo ângulo — está precisamente em terem sido pouco “tradicionalistas” em Filosofia: “Tornaram-se tradicionalistas”, disse o Pe. Thonnard, “por descuidarem a tradição filosófica”.

7. Os parágrafos que se seguem tratam do pensamento de alguns autores tradicionalistas; mas é evidente que uma exposição como esta não poderia pretender esgotar o pensamento desses autores. Dar-se-á, por isso, uma concisa definição de “tradicionalismo” que norteie de certo modo a exposição e permita destacar um que outro ponto de interesse sem que percamos de vista o fundo gnosiológico do sistema.

A descrição que se encontra em De Maria S.J. me pareceu conveniente: “Dizem-se ‘tradicionalistas’ aqueles filósofos que decretam que a razão humana, sem magistério externo e, assim, sem tradição e certa revelação primeva, ou não pode alcançar absolutamente nenhuma verdade, ainda que de ordem natural, ou ao menos é incapaz de conhecer as verdades que transcendem a ordem das coisas visíveis [20].”

Vê-se que, assim como quase todos os sistemas filosóficos modernos, o tradicionalismo é antes de tudo uma teoria do conhecimento. Em linhas bastante gerais, como já se disse, o tradicionalismo defende que, se a razão é fraca demais para, por si mesma, discernir entre a verdade e o erro, é necessário que o homem receba de fora a verdade; em outras palavras, alguém precisa ensinar-lhe a verdade, porque ele é incapaz de alcançá-la por si mesmo, e esta verdade ensinada e aprendida se conserva, evidentemente, pela tradição. É importante observar que, para os tradicionalistas, a necessidade do ensino é absoluta; se dissessem que o ensino é moralmente necessário, quanto a isto não estariam errados. Quando, no entanto, dizem que é absoluta, acabam colocando em sério risco a gratuidade e a sobrenaturalidade da Revelação divina.

A historiografia filosófica costuma subdividir o tradicionalismo da seguinte maneira: de um lado temos o tradicionalismo simpliciter, dito “puro” ou “exagerado”, e do outro, o tradicionalismo dito “moderado” ou “mitigado” (ou ainda “semitradicionalismo”). Os campeões daquele primeiro tradicionalismo sustentam que a razão é incapaz de alcançar qualquer verdade por suas próprias luzes, e os tradicionalistas moderados, por outro lado, sustentam que essa incapacidade é relativa. O representante mais autorizado do primeiro parece ser o Pe. Lamennais (principalmente em sua primeira fase); até agora, ele (e os mennaisianos mais estritos) é o único autor — à exceção, talvez, de Donoso Cortés — em que pude verificar algo que se aproxime de um tradicionalismo puro. Por vezes os manuais atribuem o tradicionalismo puro ao Pe. Bautain (1796 – 1867), mas a doutrina do Pe. Bautain (ao menos antes de ser censurado) é mais propriamente um fideísmo, e não um tradicionalismo; outras vezes, o tradicionalismo puro é atribuído ao Visconde de Bonald, e no entanto sua doutrina é um tradicionalismo mitigado, como ainda teremos oportunidade de ver. Quanto às muitas e divergentes formas de tradicionalismo mitigado, citem-se por exemplo, além do já mencionado tradicionalismo bonaldiano, o do Pe. Ventura C.R. e o de Augustin Bonnetty.

O critério da verdade, que para os tomistas em geral é o da evidência formal, para os tradicionalistas passa a ser o da autoridade. Como, no entanto, é possível que conheçamos a existência e o valor dessa autoridade? Não será, certamente, através desta mesma autoridade; haveria de haver um critério maior que ela. Importa, por essas e outras razões, objetar com o Pe. Chastel S.J.: 1) se, como nos ensinam os tradicionalistas, a verdade só nos chega pela tradição, é preciso, naturalmente, que a doutrina tradicionalista nos tenha chegado por ela; ora, isto não ocorre; 2) não somente a tradição não ensina o tradicionalismo, senão que constantemente ensina doutrinas contrárias a ele.

Se se abstraem algumas diferenças pontuais, poder-se-ia dizer que os católicos daquele século XIX passaram por situação semelhante a esta em que nos encontramos hoje: de um lado, viam-se os revolucionários mais grosseiros, materialistas, ateus, e deles os bons católicos só queriam distância; mas do outro lado estavam os “místicos”, os iluminados, inimigos do racionalismo e aparentemente amigos da Religião. Quem os católicos tenderão a apoiar?… E eis o tradicionalismo, nascido grosso modo da assimilação, feita por alguns filósofos católicos, entre a Filosofia moderna e o pensamento esotérico daqueles iluminados. Desta assimilação não surge um inofensivo punhado de ninharias epistemológicas sem nenhuma conexão com a vida dos católicos de então, mas erros (bem perigosos, por vezes) sobre numerosos assuntos; erros de que ainda hoje não nos livramos completamente, e que os iluminados de nossos dias não fazem senão repetir de algum modo. Desses erros quem nos defende são os nossos Doutores, e sobretudo nosso angélico Santo Tomás. Recorramos, pois, a eles.

Os tradicionalistas, pretendendo elevar a tradição em detrimento da razão, acabam por deprimir uma e outra. Parece que, contra o espírito bestial de nossos tempos, os católicos temos de amar nossa inteligência e ter sempre presente que, a despeito de suas limitações, ela é perfeitamente capaz da realidade e de Deus: capax entis, capax Dei; mas também não é nada inteligente desprezar a tradição, nestes tempos tão obcecados pelas mais insidiosas novidades.


§II
Joseph de Maistre e as origens teosóficas do tradicionalismo [↵]


8. O Conde Joseph-Marie de Maistre [21], fino observador, dono de uma inteligência privilegiada, de uma vasta erudição e de inegável talento como escritor, foi educado pelos jesuítas, formou-se em Direito e por algum tempo exerceu a magistratura. Deixou obra extensa, mas seus principais trabalhos filosóficos (e teológicos em certa medida) são as inacabadas Soirées de Saint-Pétersbourg (1821), vazadas em forma de diálogo, e o póstumo Examen de la philosophie de Bacon (1835). Segundo alguns autores, De Maistre era muito mais versado nos filósofos modernos do que nos grandes autores católicos; mas há que matizar um pouco esta afirmação: a ideia central do pensamento maistriano (ou seja, seu providencialismo) é profundamente caudatária de Orígenes (c. 185 – 253) e de Molina S.J. (1535 – 1600). Foi, também, fortemente influenciado por Platão (igualmente o foi De Bonald, como teremos oportunidade de ver, mas trata-se de um Platão algo espúrio), pelo humanismo renascentista, e pelo iluminismo [22].

Escritor difícil, não poderia, como já se disse, ser retratado de maneira cabal dentro dos limites de um trabalho como este que ora escrevo. Não faço senão um breve recorte de seu pensamento, ressaltando em primeiro lugar suas relações com o tradicionalismo. Vejamos se é possível atribuir-lhe um tradicionalismo, e, se sim, em que sentido podemos fazê-lo.

9. Duas proposições importantes parecem estar implícitas nas obras do nosso Gentilhomme: 1) certas ideias, sobretudo na ordem moral, encerram um elemento apriorístico que não decorre de uma causa limitada e contingente; 2) a linguagem — não somente de fato, mas de direito — não poderia ter sido inventada pelo homem. Todos os tradicionalistas sustentarão e desenvolverão de algum modo essas duas proposições.

Vejamos o Examen mais de perto. Sua crítica ao novo órganon baconiano parece justa nas intenções, mas não é sólida nos fundamentos. Joseph de Maistre, por vezes, se expressa de modo obscuro e impreciso; cita algumas vezes Aristóteles e Santo Tomás, elogia-os, mas nem sempre os interpreta com fidelidade. Joseph de Maistre — assim como Donoso Cortés, que veremos mais adiante — é daqueles escritores que, pela falta de rigor terminológico, necessita da interpretação benigna de seu leitor, porque, se se tomam certas passagens isoladamente e separadas do espírito da obra, muitos erros alheios a seu pensamento poderiam ser-lhe imputados. (Mas há que tomar cuidado com isto de “espírito da obra”; é difícil dizer, por exemplo, se o espírito que anima a obra maistriana é o de um iluminado martinista ou de um católico sincero mas pouco versado na Filosofia e na Teologia sãs). Seja como for, De Maistre dá bastante importância à tese das ideias inatas, e para defendê-la emprega expressões que, para o Pe. Brin [23], seriam menos surpreendentes vindas de Hegel. O inatismo para o Conde é a salvaguarda necessária do espiritualismo (que em De Maistre é sempre exagerado): todo sistema que, negando a pertença de certas ideias à natureza humana, atribua ao conhecimento uma origem sensível conduz logicamente ao ateísmo — o que não quer dizer que De Maistre seja fideísta, pois o Conde reconhece a necessidade da razão para que a revelação seja possível. Mesmo assim, De Maistre parece comprometer seriamente a objetividade do conhecimento humano. Com efeito, diz-nos o Saboiano quando discorre sobre as relações entre a definição, a ideia, o signo e as coisas:

O maior dos erros seria portanto crer […] que o que não pode ser definido não é conhecido, uma vez que, ao contrário, é a essência do que é perfeitamente conhecido que não pode ser definida; pois quanto mais uma coisa é conhecida, tanto mais ela se nos aproxima da intuição, que exclui toda equação.
E quanto à definição, tal como nós a podemos dar, trata-se de uma indicação, ou, se se quiser, de uma exposição [exposant] mais ou menos perfeita, porque a equação extraída dos elementos ou das qualidades faz sempre omitir [ignorer] o nome [24].

Para De Maistre, as essências são alcançadas por intuição (é dizer: pelo nome, pelo signo), não por definição.

As Soirées, talvez sua obra mais importante, também são de difícil interpretação em alguns momentos, por causa da forma em que foram vazadas. Ali, De Maistre pretende justificar o governo temporal da Providência e investigar o problema do mal, mas acaba incidentemente tocando em muitas questões filosóficas. Em certo trecho, depois de terem discutido a transmissão hereditária do mal (físico e moral), as personagens do diálogo se debruçam sobre o problema da linguagem: tanto nos povos bárbaros quanto nos povos civilizados, as alterações do idioma primitivo causaram o esquecimento, ao menos parcial, dos conhecimentos que esse idioma de algum modo encerrava. Novamente, a linguagem e as ideias primeiras parecem derivar necessariamente de uma fonte sobrenatural; por conseguinte, e ainda com o Pe. Brin, a experiência sensível e o trabalho da razão ficam reduzidos à impotência quanto a este ponto capital.

Ora, se se considera o tradicionalismo enquanto teoria do conhecimento, somos levados a concluir que o tradicionalismo maistriano é ainda implícito [25], visto que, repita-se, aquelas duas proposições enumeradas acima não se encontram plenamente enunciadas e desenvolvidas em De Maistre — o que não quer dizer que estejam desprovidas de sua formalidade, porque o implícito já é formal, ainda que confusamente; e, no caso do Conde, parece tratar-se de um tradicionalismo mitigado (segundo a distinção que estudamos anteriormente).

10. Aquela definição de “tradicionalismo” que vimos, e que foi dada para nortear de algum modo a exposição, fará investigar em primeiro lugar a Gnosiologia dos autores; todavia, é preciso, como dito, ir um pouco além dela, e deste modo fica provado meu ponto quanto ao perigo que encerram os escritos de Joseph de Maistre, que é talvez o mais célebre e engenhoso dos autores que aqui veremos. Pois bem, alguns problemas, por vezes um pouco sutis, da obra do Savoiardo poderiam ser tratados com fruto: sua opinião acerca da doutrina herética das duas almas, sua heterodoxia no que diz respeito à questão dos sacrifícios, sua doutrina do senso comum, seu ecumenismo, enfim, nada que já não tenha sido discutido amplamente pelos estudiosos que se debruçaram sobre sua obra; no entanto, parece mais proveitoso falar da questão do milenarismo maistreano sobretudo na última e inacabada soirée, e nas célebres e recentemente editadas no Brasil Considérations sur la France (1796), fonte de que ainda hoje bebem diversos tradicionalismos de nossos dias — quase sempre ligados, conscientemente ou não, à TFP ou ao IPCO (fatimismo, “Reino de Maria”, anticomunismo caduco, contrarrevolução, etc.) É curioso observar, ainda, que o antigo nome da TFP era Sociedade Joseph de Maistre; e no interior mesmo da TFP, a sociedade secreta Sempre Viva, denunciada por Fedeli no livro No país das maravilhas, tinha fundo doutrinal martinista.

Já conhecemos um pouco o meio em que viveu Josephus a Floribus. O Conde foi, por muitos anos, assíduo frequentador das lojas “místicas” da Maçonaria, e parece nunca ter deixado de ler os autores “místicos”. Naturalmente, este ambiente maçom illuminé era carregado de milenarismo e de ecumenismo, e De Maistre não ficou alheio às influências desse ambiente na época em que o frequentava ou pouco depois de tê-lo deixado — como no-lo mostra muito claramente seu Mémoir au Duc de Brunswick, de 1782, em que expõe sua opinião acerca do que seja a verdadeira Maçonaria, seus fins, etc., e acerca também do que entende por “Cristianismo transcendente”. O problema é que De Maistre não abandonou completamente essas ideias nos anos que se seguiram. Com efeito, nas Considérations, admite a possibilidade de uma terceira Revelação: “Parece-me que todo verdadeiro filósofo deve optar entre estas duas hipóteses, ou que vai formar-se uma nova religião, ou que o cristianismo vai rejuvenescer de alguma maneira extraordinária. É entre estas duas suposições que devemos escolher, segundo o partido que tomámos sobre a verdade do cristianismo” [26]. Segundo De Maistre, somente um homem de vistas curtas descartaria totalmente essas hipóteses, afinal “que homem da antiguidade poderia ter previsto o cristianismo?” [27].

Na undécima e última soirée, De Maistre é ainda mais claro quando faz uma das personagens dizer:

Não me digas que tudo está dito, que tudo foi revelado, e que não nos é permitido esperar nada de novo […]. O judeu que se agarrava à casca tinha toda a razão, até o advento, em crer no reino temporal do Messias; no entanto ele estava enganado, como se viu depois: mas sabemos o que nos espera a nós? “Deus estará conosco até ao fim dos séculos”; “as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja”, etc. Muito bem! Mas disto resulta, eu vos pergunto, que Deus proibiu-se toda manifestação nova, e que ele não pode mais nos ensinar nada além daquilo que já sabemos? [28]

Justiça seja feita a Joseph de Maistre: esta última soirée está inacabada; e, conquanto tenha sido escrita muitos anos depois do resto da obra — e isto leva a maior parte dos comentadores a considerá-la como sendo a última palavra do Conde sobre os assuntos ali abordados —, é preciso dizer que seria simplismo classificar o pensamento maistriano de “milenarista”, como se tudo girasse em torno disso. Não. Mas, seja como for, me parece muito difícil negar que seja milenarista — ou que ao menos tenha fortes tendências milenaristas —, e este é o ponto em que eu queria tocar.

O exame de sua correspondência também é particularmente interessante, porque ali o Saboiano “profetiza” “cheio de esperança”, como ele mesmo diz, este “grande evento”. (O “profetismo” de De Maistre, pelo qual — creio — o Conde foi chamado por Mons. Delassus “profeta dos tempos presentes” — o mesmo Delassus que toma o nosso “Isaías de salão” como uma de suas principais referências —, este “profetismo” de Joseph de Maistre, eu dizia, é herança de seu convívio com os iluminados, segundo François Vermale [29].)

Pois bem, ainda que seja pouco, parece-me suficiente; mas para que eu não passe por exagerado ao acusá-lo de milenarismo baseando-me em tão pouco, acrescento uma citação de Viatte, incontestável autoridade no que diz respeito ao estudo do romantismo:

[Joseph de Maistre] vai ainda mais longe; e, assim como Chateaubriand profetizará “a consumação dos séculos de morte e de opressão nascidos da queda”, assim também Joseph de Maistre leva a ousadia até ao ponto de não excluir uma terceira revelação. Aí — nestas conjeturas que ele conservou de seu contato com a Franco-maçonaria —, aí se encontra o único ponto em que ele pode ser incriminado de romantismo. E é infelizmente a parte de sua obra que exerceu a maior influência [30].

§III
Louis de Bonald, da palavra à Política [↵]


11. O Visconde Louis-Gabriel-Ambroise de Bonald (1754 – 1840) — homem austero, de vida exemplar, figura de grande importância no contexto da Restauração — escreveu sua primeira obra filosófica, Théorie du pouvoir politique et religieux (1796), durante seu exílio em Heidelberg (Alemanha). Pouco tempo depois de seu retorno à França, Napoleão Bonaparte, já imperador, depois de ter lido um dos exemplares da Théorie du pouvoir, que o Diretório havia confiscado, nomeou-o para o Conselho da Universidade, cargo que o nosso Visconde aceitou com não pouca relutância. De Bonald desempenhou, nos anos que se seguiram, várias funções políticas, gozando sempre de muita admiração e respeito, tanto por sua probidade quanto pela reputação que tinha como intelectual.

Mais moderado e geométrico que De Maistre, o Visconde de Bonald pode ser considerado formalmente tradicionalista, ainda que seu tradicionalismo seja mitigado [31]. Alguns o têm como o primeiro sistematizador do pensamento tradicionalista; mas importa notar que, ao que tudo indica, a palavra “tradicionalista” foi forjada em 1849 pelo Pe. Chastel, e portanto é posterior à morte de De Bonald [32].

12. De Bonald é visto por muitos como um dos maiores expoentes daquilo a que, em certos meios, se convencionou chamar “pensamento contrarrevolucionário”, o que significa, evidentemente, que o que se lhe costuma privilegiar — ao menos nesses meios — é a Filosofia Política; mas sua Filosofia Política é consequência de sua teoria do conhecimento e da linguagem. Veremo-lo mais adiante. Segundo Palacios, De Bonald conhecia de Aristóteles somente a Poética e a Retórica; também ignorava os escolásticos. Além das influências teosóficas que Viatte faz notar (que para mim parecem, antes, indiretas neste caso), podem destacar-se no campo da Filosofia: Descartes, Malebranche, Destutt de Tracy, Condillac, Locke; as alusões a Platão e ao Estagirita presentes em suas Recherches philosophiques (1818) e em outras obras, são antes a representação de duas correntes ideológicas opostas (“ideológicas” no sentido traciano de “referentes ao estudo das ideias”): o “inatismo platônico” e o “empirismo peripatético”. De Bonald proporá uma solução intermediária que Palacios denomina “platonismo empírico”. Cumpre que a vejamos, porque é sobre esta base que se ergue a Política bonaldiana.

Quando estudamos a Filosofia moderna, notamos duas tendências ideológicas (“ideológicas” naquele mesmo sentido) a digladiar-se. De um lado tem-se a corrente das ideias inatas, segundo a qual Deus imprimiu certas ideias universais em nossa alma, e elas ali estão independentemente de nossa experiência sensível. Do outro lado, a corrente das ideias adquiridas, cujos partidários sustentam que as ideias encontram suas origens precisamente na experiência sensível. Ouçamos o que sobre o assunto diz De Bonald em sua Législation primitive (1802):

No povo mais ilustrado da Europa em seus pensamentos, mais natural em sua linguagem, e mais bem ordenado em suas leis religiosas, políticas e civis, Descartes, Malebranche e seus numerosos discípulos haviam espiritualizado a questão da origem das ideias, até ao ponto (Malebranche sobretudo) de não fazer entrar nelas senão o puro intelecto, quase sem mescla de sensações. Locke, sob a influência de uma outra religião, de um outro governo, de uma outra língua, num povo entregado exclusivamente aos cuidados terrenos; Locke, espírito paciente e sutil […], materializou a questão das ideias, das quais viu a origem unicamente em nossas sensações, considerando mesmo como incerto se não as podemos atribuir à pura matéria [33].

Para De Bonald, as ideias se subdividem em duas classes. As ideias gerais ou simples (por exemplo: “ordem”, “justiça”, “sabedoria”, “poder”) são aquelas que não nos vêm pelos sentidos; no fundo, são a ideia de Deus, de suas perfeições. Por outro lado, as ideias coletivas ou compostas (por exemplo: “brancura”, “doçura”, “frieza”), sim, nos chegam mediante os sentidos externos, envolvem imperfeição, e por isso não se aplicam a Deus propriamente [34].

Já se começa a perceber como o Visconde pretende solucionar o problema da origem das ideias. Sua posição intermediária entre o inatismo e o sensualismo consiste em que as ideias sejam, ao mesmo tempo, naturais e adquiridas. “A ideia é inata”, diz-nos ele, “[mas] sua expressão é adquirida”. Como isto se dá? Citemos uma vez mais suas Recherches philosophiques sur les premiers objets des connaissances morales:

[A] ideia é necessária para que a palavra signifique alguma coisa e seja propriamente uma expressão, e a expressão é igualmente necessária para que a ideia seja sensível ao espírito. Mas a ideia é universal, portanto ela é nativa ou inata; a expressão é local e diferente nas diversas línguas, portanto ela é adquirida. Assim, pode dizer-se que a ideia é, ao mesmo tempo, inata e adquirida, inata em si mesma, adquirida em sua expressão [35]

E ainda no mesmo livro:

[Para] dar uma última imagem, por certo bem sensível, da função do espírito e dos órgãos na relação necessária entre a ideia e sua expressão, o entendimento é como um papel escrito com uma tinta incolor, sobre o qual a escrita só se torna visível quando friccionada com um outro licor. Pode dizer-se que sobre este papel a escrita é inata de algum modo, porque ela existia antes de aparecer, e porque ela precedeu o meio empregado para torná-la visível; pode dizer-se que é adquirida, porque ela não se mostra senão sob a condição e por meio do licor que se lhe acrescenta [36].

De tudo o que foi dito, podemos extrair a seguinte proposição: a palavra é necessária para a ideia. Retenhamo-la. É neste sentido que se deve entender aquele seu famoso e confuso aforismo da Législation primitive, que traduzo por: “O homem pensa sua fala antes de falar o que pensa” (em francês é “L’homme pense sa parole avant de parler sa pensée”).

13. A incorreta compreensão desta doutrina bonaldiana levou a que muitos — inclusive autores de bons manuais escolásticos — lhe atribuíssem um tradicionalismo exagerado: para o Visconde, todas as ideias procederiam indistintamente da linguagem; mas isto não está correto. Com efeito, as verdades do mundo físico são verdades particulares não suscitadas pela palavra, mas pelas coisas mesmas. Diz De Bonald nas já tão citadas Recherches philosophiques:

As verdades particulares ou os fatos físicos e sensíveis são conhecidos por cada homem pela informação de seus sentidos e das impressões (imagens ou sensações) que ele recebe dos objetos exteriores. Ele não tem nenhuma necessidade da linguagem para percebê-los, porque os animais, aos quais a palavra foi negada, os percebem como ele, e a palavra só lhe é necessária quando quer combinar e generalizar essas imagens e essas sensações, e fazer delas noções abstratas [37].

Pois bem. Palacios sintentiza a ideologia bonaldiana da seguinte maneira: a sociedade, por meio da linguagem, dá ao homem as verdades gerais, que por isso se chamam “morais” ou “sociais” (existência de Deus, imortalidade de alma, recompensa e castigo, direito e dever, justo e injusto, etc.); o indivíduo, por sua vez, através dos sentidos, capta as verdades particulares, que por isso se denominam “físicas” ou “individuais”. Pergunto: podemos concluir daí que as verdades sociais são apenas cridas, enquanto as verdades individuais são vistas? Não é exatamente o que quer dizer o nosso Visconde. Sob o influxo da doutrina malebranchiana da visão de tudo em Deus (que já vimos De Maistre elogiar mais acima), De Bonald sustenta que as verdades sociais não são meramente cridas, senão que são verdades evidentes de certo modo, são vistas em Deus mesmo. Apenas, a palavra será necessária para despertar essas verdades; donde também não a podermos considerar um veículo de ideias, como parecem fazer os iluminados, mas uma simples ocasião sensível de trazê-las à tona. O tradicionalismo bonaldiano está em que a linguagem — uma realidade essencialmente tradicional, para empregar a expressão de Palacios — é que deve necessariamente suscitar no homem a visão da ideia. Todavia, e independentemente disso tudo, não se pode ignorar que, para De Bonald, não devemos examinar as verdades gerais — fundamento da sociedade — para saber se merecem ou não ser rechaçadas; quem o faz rebela-se contra a mesma sociedade que lhas ensinou por meio da linguagem; quem o faz, arvorando-se em juiz, na verdade pretende destronar a razão universal e colocar em seu lugar a razão particular. É por isso que, segundo De Bonald, o filosofar não começa por um “duvido”, como em Descartes: é preciso começar por um “creio” [38]. (Por esta e por algumas outras razões, é preciso conceder que o classificar De Bonald como “tradicionalista exagerado” não é de todo descabido.)

Estamos agora em condições de formar mais uma proposição: a sociedade é necessária para a palavra. Claro, porque, uma vez admitidos tanto a impossibilidade da invenção da palavra pelo homem, quanto o fato de que ela fora revelada por Deus a Adão [39], somos levados à conclusão de que a palavra não pode existir sem que haja alguém que a ensine, quer dizer, sem que haja sociedade.

14. Munidos daquelas duas proposições, podemos armar o seguinte silogismo: A palavra é necessária para a ideia; ora, a sociedade é necessária para a palavra; logo, a sociedade é necessária para a ideia. Com isso, chega-se à Política. A sociedade é necessária para o exercício da razão individual, o indivíduo é necessariamente social. O pensamento moderno — em seu afã de dar ao homem uma liberdade que não tem, de desembaraçá-lo da lei natural e da lei eterna, para que não precise obedecer senão a si mesmo — pretendeu, negando a natureza social do homem, sustentar que a sociedade é efeito de um contrato. De Bonald pretendeu mostrar que o que sucede é bem outra coisa.

Agora se vê como a Política de De Bonald é rigorosamente, matematicamente caudatária de sua Gnosiologia. Parece que alguns autores católicos querem descartar-lhe a Gnosiologia sem abrir mão da Política bonaldiana. Ora, será possível desvincular uma coisa da outra? E supondo que o seja, sua Política é assim tão boa que não deva ser abandonada? Concentremos nossos esforços em tentar dar a esta segunda questão uma resposta satisfatória.

Entre as verdades gerais (ou morais, ou sociais) — inatas mas despertadas pela palavra, a qual aprendemos, por assim dizer, via tradição —, De Bonald nos ensina que há três categorias maximamente gerais: causa, meio e efeito. (Só na afirmação de que são “categorias” e que são “maximamente gerais” já se encontram mais problemas do que palavras, para empregar a expressão do nosso Visconde; mas deixemo-los de lado por ora.) Esta constatação é capital. Das relações naturais, fixas e invariáveis destas três categorias fundamentais da linguagem, como bem mostra Palacios, derivam as relações das três categorias sociais: poder, ministro e súdito. A causa se transfigura em poder, o meio em ministro, o efeito em súdito. Vejamos como isto se dá na sociedade. No caso do indivíduo, a inteligência é causa e poder, os órgãos são meios e ministros, o mundo que o circunda é efeito e súdito. No caso da família, o pai é poder, a mãe é ministro, o filho é súdito. No caso do estado, têm-se, respectivamente, rei, nobreza e povo. No da Igreja: Deus, mediador e homens. Como se forma a sociedade, que De Bonald define em diversas ocasiões como “uma reunião de seres semelhantes para sua reprodução e conservação mútua” [40]? Já vimos que, para o Visconde, a sociedade não é resultado de um contrato social, como queriam Rousseau, Hobbes, Locke e os outros contratualistas. “A formação da sociedade pública”, continua De Bonald, “não foi nem voluntária, nem forçada: foi necessária”. As famílias, amedrontadas por algum inimigo, ou por animais ferozes e coisas que tais, depois de tentarem salvar-se de diversas formas, mas sem êxito, passam a ser conduzidas por algum homem excepcional que lhes fornece a solução: eis o poder. Os melhores homens o compreendem e se unem a ele: eis os ministros. Os demais, no conforto proporcionado pela proteção da inteligência e da valentia dos dois grupos anteriores, servem-nos e trabalham: eis os súditos. Instrinsecamente à formação da sociedade, surge também sua constituição, que é igualmente natural. Isto é importante. Para De Bonald, o homem (individual ou coletivo) não é um legislador, não pode aspirar a transformar a sociedade inventando leis: deve, ao contrário, ajustar-se às leis que decorrem naturalmente da sociedade. “O homem é tão incapaz de dar uma constituição à sociedade religiosa ou política”, diz ele, “como de dar a gravidade aos corpos ou a extensão à matéria”. Mas — explica Palacios — como a constituição natural não afeta somente a sociedade política, senão que também afeta a sociedade religiosa (e a civilização é a reunião de ambas), De Bonald estabelece um paralelismo entre elas, as quais, tendendo naturalmente ao equilíbrio pela semelhança entre suas respectivas formas de governo [41], produzem a constituição natural daquilo que se denomina “sociedade civil”.

15. Lembremo-nos que o que queremos saber é se a Filosofia Política do Visconde é tão boa que não mereça ser rejeitada juntamente com sua Gnosiologia tradicionalista. Exposta esta Política em suas linhas mais gerais, proceda-se-lhe agora ao exame [42].

Antes de tudo, quanto à concepção bonaldiana de “sociedade”, deve dizer-se que merece ser rejeitada. Para De Bonald, a sociedade é natural e necessária para a reprodução e para a conservação do homem; mas como a sociedade mais evidentemente necessária em ordem a esses dois fins é a família, daí se deve concluir que a sociedade política e a sociedade doméstica se confundem. O problema nesta argumentação está em que a cidade não é natural e necessária da mesma maneira que a família o é; “natural” e “necessário” devem tomar-se em sentidos distintos: a família é natural e necessária com respeito à formação e à conservação do ser do homem, ao passo que a cidade o é com respeito ao fim do homem [43]. O descuido para com estas distinções, e consequentemente a confusão entre a família e o estado, ademais de encerrar um germe de totalitarismo, implica no fundo “a reivindicação para o homem de uma prerrogativa divina”, segundo conclui De Monléon. Com efeito, quando examinamos com cuidado a premissa bonaldiana “(Das duas sociedades), aquela que se refere à substância do homem é a mais perfeita, e a outra se reduz à primeira”, somos levados a concluir pela identidade entre o primado ontológico da substância e a perfeição teleológica do bem. Ora, tal não se dá no homem.

Mas há mais. No que diz respeito à tese da constituição natural aplicada à sociedade religiosa, “me inclino a pensar”, avalia Palacios, “que não presta grandes serviços para significar que a Igreja não foi arbitrada pelo homem, e que o catolicismo é uma religião revelada”. Ademais, De Bonald erra quando, exagerando o fato de que a sociedade política é natural, põe que esta inclinação natural do homem para a vida social produz a constituição natural da sociedade como que automaticamente, sem nenhuma necessidade de complementar-se com uma atividade racional e livre. Também quanto àquilo a que denomina “sociedade civil” (a soma da Igreja com o estado) há graves problemas; em primeiro lugar quanto ao nome, pois não convém assim nomear uma comunidade que englobe a Igreja em seu seio; depois, e mais grave, quanto a sua problemática concepção de “natural” e de “sobrenatural”, que acaba pondo em sério risco a transcendência da Igreja.

Muito bem, ainda que não seja tudo, parece bastar para concluir que o pensamento político de De Bonald, pelos erros que contém, merece ser rejeitado juntamente com sua Gnosiologia. Não digo que o Visconde não tenha escrito coisas boas sobre Política, pois as escreveu; mas também não entendo a razão de tanto esforço no sentido de canonizar-lhe a Política.

16. Há, repita-se, muitas outras coisas que rechaçar em De Bonald; leia-se, por exemplo, esta passagem da Théorie du pouvoir: “A religião”, disse ele, “é pois sentimento, e não opinião; princípio da mais alta importância, chave de todas as verdades religiosas e mesmo de todas as verdades políticas” [44]. De Bonald, é verdade, como todos os tradicionalistas, mereceriam um longo e profundo estudo; mas é preciso prosseguir. Falemos agora sobre seu mais importante discípulo, o Pe. Lamennais.


§IV
A coerência do tradicionalismo de Lamennais [↵]


17. Félicité-Robert de la Mennais (ou Lamennais, como ele próprio passou a assinar a partir de 1827) era também dono de uma inteligência profunda e de muitas qualidades mais, como os outros autores que já estudamos. Aos 5 anos de idade perdeu sua mãe, e por esta razão sua educação e a de seu irmão Jean-Marie (1780 – 1860) foi confiada a um parente, possuidor de uma rica biblioteca. Em casa deste parente, adquiriu muito gosto pela leitura, e foi ali que conheceu, ainda na infância, a má Filosofia do século XVIII; mas lhe agradava principalmente a leitura dos Essais de morale (1671) do célebre jansenista Pierre Nicole (1625 – 1695). Na adolescência — por causa das leituras imprudentes e do autodidatismo —, passou por violentas crises sentimentais e intelectuais que o levaram a abandonar a prática da Religião. Mais tarde, graças à boa influência de Jean-Marie — o qual se fez sacerdote em 1804 —, Féli retornou ao Cristianismo. Em colaboração com o irmão, publicou em 1808 as Réflexions sur l’état de l’Église en France contra o galicanismo. Após alguma hesitação, cedeu à imprudente pressão de diretores espirituais “místicos”, e fez-se padre também, em 1816 (alguns autores põem 1817). Entre 1817 e 1823, publicou os quatro volumes do Essai sur l’indifférence en matière de religion, e também a Défense de l’Essai, nos quais defende vigorosamente o Catolicismo contra os ataques do enciclopedismo, do galicanismo, do protestantismo, etc. O Essai fez um imenso sucesso, e ali o Pe. Lamennais é um perfeito tradicionalista. Depois, em Des progrès de la révolution et de la guerre contre l’Église (1829), mas sobretudo nas publicações do periódico L’Avenir, Lamennais descamba para o Catolicismo liberal, pelo que foi condenado (sem ser nomeado) pelo Papa Gregório XVI na encíclica Mirari vos (1832); Lamennais reunia em torno de si nomes importantes como Montalembert, Lacordaire, Gerbet, Rohrbacher e Salinis. Depois da condenação, obstinado no erro, abandonando as funções sacerdotais, e então rompendo com a Igreja, publicou as Paroles d’un croyant (1834) — condenadas (desta vez, nomeando-o) pelo mesmo Gregório XVI na encíclica Singulari Nos (1834) —, para depois tornar-se, lamentavelmente, um político socialista. Nunca chegou a ser excomungado, mas no leito de morte recusou-se a receber um sacerdote.

18. Agora o que mais nos interessa é a doutrina do primeiro Lamennais, o monarquista ultramontano. De certo modo, Gregório XVI não condenou este Lamennais, condenou o Lamennais liberal; mas não deixa de ser intrigante o fato de ele, Lamennais, antes da condenação, ter mudado assim tão radicalmente, de monarquista absolutista para democrata… Em um primeiro momento, poderíamos pensar — e não estaríamos de todo equivocados — que o que houve foi uma simples reorientação de pensamento; assim, o galicanismo reinante na França e o silêncio do papa de então quanto a isto, no fim da década de 1820, fizeram Lamennais perder as esperanças na monarquia, e o levaram a apostar em uma nova Cristandade, adaptada ao novo mundo que então nascia da Revolução Francesa. Isto, porém, é somente parte da verdade: como teremos oportunidade de estudar, o que realmente houve foi o desenvolvimento de um liberalismo que sempre esteve em Lamennais (é o próprio Féli quem no-lo revela no trecho de uma carta de 1837, transcrito como epígrafe deste meu opúsculo). Não resta senão indagar como o segundo Lamennais se encontrava no primeiro. Apesar de óbvia — e de já parcialmente respondida aqui (cf. a. I, §I, n. 6) —, a pergunta não deixa de ser útil. Vejamos se é possível dar-lhe uma resposta mais completa [45].

19. Lê-se no mencionado verbete “Lamennais” do D. T. C. (c. 2478-2479), sobre a fase católica do autor do Essai:

Lamennais é antes de tudo um político, um sociólogo, cujas preocupações todas se ordenam às questões de organização social e política; ele não visa tanto a salvação eterna das almas quanto a salvação temporal das sociedades, da França em particular […]. Se a religião lhe interessa agora, não é tanto porque constitui um dever para com Deus, nem mesmo porque só ela nos pode dar a felicidade, é sobretudo porque só ela pode fornecer uma base firme às sociedades humanas, legitimando aos olhos do indivíduo o direito de comandar e o dever de obedecer, sem os quais não há sociedade possível. E para Lamennais, como para Bonald, e contrariamente ao que crê o senso comum, a religião não se define “conjunto de relações que unem o homem ou os homens a Deus”, mas “conjunto de relações que unem os homens entre si e a Deus”. A religião é o único liame social. E, então, eis a religião subordinada à política: [a religião] não tem valor, aos olhos de Lamennais, senão pelos serviços que rendeu e que pode e deve ainda render à sociedade. Ora, o grande benefício social do cristianismo foi a libertação do gênero humano; o grande benefício que [Lamennais] espera da restauração da ordem social cristã da Idade Média é uma nova libertação das sociedades humanas, que hoje não se sustentam mais senão sobre a força. A liberdade, a independência do homem em relação ao homem: tal é […] a ideia diretriz, a aspiração fundamental de toda a vida de Lamennais.

Esta concepção política da missão da Igreja, como disse o Pe. Meinvielle, nutre tanto o ultramontanismo antidemorático do Lamennais tradicionalista, quanto o liberalismo do Lamennais de L’Avenir, “pai do liberalismo católico”. Neste sentido, observa agudamente Carlos Nougué:

Não se creia, todavia, que Lamennais padecesse algum transtorno de personalidade múltipla. Os três Lamennais têm uma raiz comum: em vez de, como devido, defender que o poder temporal deve ordenar-se essencialmente e diretamente ao poder espiritual quanto ao fim deste, que é Deus mesmo e a salvação das almas, Lamennais dividia a Igreja em duas, uma terrestre, outra celestial. Caberia à terrestre perseguir um fim imanente das sociedades humanas […] independentemente do fim sobrenatural da outra Igreja, a celeste [46].

20. Muito bem. Estabelecida a existência de um liberalismo e de uma sorte de naturalismo em Lamennais, resta saber a parte que tem o tradicionalismo nisso tudo.

Normalmente o que se diz é que o Lamennais tradicionalista é um bonaldiano; e, de fato, grande parte do tradicionalismo de Lamennais está em De Bonald. O que, no entanto, se omite, ou não se percebe, é que o tradicionalismo mennaisiano também já se encontra em Joseph de Maistre [47]. Por isso tinha razão o Pe. Nitoglia quando disse que tanto o “democratismo” derivado de Lamennais quanto o “monarquismo” maistriano são de doutrina substancialmente convergente. Seja como for, uma das principais ideias do Lamennais tradicionalista é a doutrina do senso comum (à qual, diga-se de passagem, alguns mennaisianos mais estritos associam o nome de Buffier S.J. [48]). Em que consiste? É uma tese concernente ao critério de certeza, naturalmente; para o Pe. Lamennais, como para os outros tradicionalistas, a certeza está na autoridade. Ouçamo-lo em sua Défense de l’Essai:

Para evitar o cepticismo para o qual conduz a filosofia do homem isolado, em vez de procurar em si a certeza racional de uma primera verdade, deve-se partir de um fato, que é esta fé insuperável inerente à nossa natureza, e admitir como verdadeiro tudo o que os homens creem invencivelmente.
A autoridade, ou a razão geral, o consentimento comum, é a regra dos julgamentos do homem individual [49].

Ora, se não admitimos a infalibilidade do senso comum — ensina Lamennais —, nenhuma certeza é possível (aqui está o tradicionalismo puro de que falei antes). Como nos chegaram as verdades do senso comum? Elas foram reveladas por Deus a nossos primeiros pais e nos chegaram através daquela tradição, mais ou menos fielmente conservada pelas diversas civilizações ao longo da história, como já vimos muitas vezes. Mas para Lamennais — e aqui reside um problema delicado — o conteúdo desta Revelação corresponde às verdades do próprio Cristianismo; portanto, uma vez que as falsas religiões derivam, de certo modo, desta mesma tradição primitiva, o que falta para concluir que entre a Religião e as falsas religiões não há senão diferenças acidentais?. Diz ele no primeiro volume do Essai: “Certas religiões podem variar no que têm de arbitrário, seja em vantagem, seja em detrimento da ordem social; mas seu fundo subsistiu sempre, sem o qual à sociedade faltaria uma condição necessária para sua existência” [50]. E no terceiro volume do mesmo: “Assim, os cristãos creem em tudo o que acreditava o gênero humano antes de Jesus Cristo, e o gênero humano [antes de Cristo] acreditava em tudo o que creem os cristãos; pois que as verdades da religião ligam-se entre si e se supõem mutuamente, elas estão todas contidas na primeira revelação assim como as verdades que Deus revela aos eleitos no céu estão contidas nas [verdades] que são aqui embaixo objeto da fé [dos eleitos]” [51].

Conquanto se pretendesse apologista do catolicismo, diz-nos o verbete do D. T. C. (c. 2483), em verdade o que o Lamennais do Essai defendia era sua própria religião; religião que é antes uma “metafísica social”, cujos princípios, já formulados no supradito Essai, serão levados ao termo no Esquisse d’une philosophie (1840-1846), obra do último Lamennais; todavia, e como não poderia deixar de ser, este naturalismo já o encontramos de algum modo em De Maistre e em De Bonald. Sobre o primeiro, disse perspicazmente Orestes Brownson — que no entanto sustentava ser tal erro, em De Maistre, apenas aparente — que o Conde, quando faz analogias entre o Cristianismo e as religiões antigas, não parece ter traçado com precisão a linha que separa o Cristianismo do consensus hominum, favorecendo, aparentemente, a ideia de que a autoridade da Igreja decorre do fato de ela ser o órgão pelo qual o consentimento universal do gênero humano se expressa — precisamente o que o nosso Lamennais defende; Féli, ainda que tenha se esforçado, nunca conseguiu estabelecer o porquê de a autoridade da Igreja ser superior à autoridade da razão geral.

21. Pois bem. Haveria ainda muito o que dizer e aprofundar em relação a Lamennais, mas parece que chegámos a bom porto, agora que somos capazes de perceber como tradicionalismo, naturalismo e liberalismo se harmonizam no pensamento do Bretão. É útil, não obstante, mencionar o fato de que, além das já mencionadas condenações de Gregório XVI, houve em 1832 uma tentativa de censura de 56 proposições (!) de Lamennais e dos mennaisianos, movida por vários bispos e arcebispos franceses: é a chamada “Censura de Toulouse”. O papa recebeu uma cópia desta censura, com uma carta dos bispos envolvidos; mas, como dito, Gregório XVI preferiu, na primeira encíclica, condenar apenas as doutrinas de L’Avenir [52], ao passo que a censura visava sobretudo o Essai — caudatário, como dito e redito, de De Bonald, de De Maistre, de Chateaubriand et alii. Esta censura, que engloba não só teses de Lamennais, mas também — quem ousaria negá-lo? — teses comuns à maior parte dos tradicionalistas, esta censura, eu dizia, não deve ser menosprezada, apesar, é claro, de nunca ter sido aprovada oficialmente.


§V
Donoso Cortés, tradicionalista ou não? [↵]


22. O Marquês de Valdegamas, Juan Francisco María de la Salud Donoso Cortés y Fernández Canedo (1809 – 1853) — “o Maistre espanhol”, segundo o Cardeal Zeferino Gonzáles —, depois de passar por um período de liberalismo e de cepticismo (provavelmente causado pela leitura dos philosophes), abriu os olhos graças à morte de seu irmão, em 1847, e então converteu-se definitivamente ao Catolicismo. Entrou em contato com o pensamento tradicionalista quando na França trabalhava como embaixador. Escritor brilhante, católico sincero e devoto, era, como o Saboiano, dono de grande inteligência e lucidez; mas conhecia pouco, também como De Maistre, a Filosofia e a Teologia tomistas. Este defeito, que é o defeito comum dos tradicionalistas, impediu que seu zelo produzisse, no combate em defesa da Igreja, frutos à altura dos dons que recebera de Deus.

Mais equilibrado, em alguns momentos, do que, por exemplo, um De Bonald, Donoso não deixa, contudo, de ter cometido erros graves [53]. Sua principal obra é o Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo (1851); vejamo-lo.

23. O Ensayo tem problemas sérios, os quais foram denunciados pela primeira vez pelo Pe. Gaduel em Erreurs théologiques et philosophiques de M. Donoso Cortès, Marquis de Valdegamas [54]. O que nos interessa antes de tudo é o tradicionalismo de Donoso Cortés; o supradito Ensayo, todavia, não é obra científica, razão por que não podemos encontrar aí uma exposição sistemática do pensamento de Donoso (pelo menos no que diz respeito aos assuntos que aqui nos preocupam).

Sobre os efeitos do pecado original no homem, diz-nos Donoso:

[Desde a queda, a vida do homem] foi toda tentação e batalha, ignorância sua sabedoria, sua vontade toda fraqueza, toda corrupção sua carne. Cada uma de suas ações era acompanhada de um arrependimento; cada um de seus prazeres foi seguido de um travo amargo ou de uma dor agudíssima; quantos foram seus desejos, tantos foram seus pesares; quantas suas esperanças, tantas outras suas ilusões; e quantas suas ilusões, outros tantos seus desenganos [55].

E em outra parte:

[A falibilidade], enfermidade do entendimento enfermo, é a primeira e a maior das doenças humanas; de cujo princípio se seguem as consequências seguintes: se o entendimento do homem é falível, porque está enfermo, não pode estar nunca certo da verdade, porque é falível; se não pode estar nunca certo da verdade, porque é falível, esta incerteza está de uma maneira essencial em todos os homens, tanto juntos, quanto isolados; se esta incerteza está de uma maneira essencial em todos os homens, isolados ou juntos, todas as suas afirmações e todas as suas negações são uma contradição de termos, porque hão de ser forçosamente incertas [56].

A falsidade daquele erro tradicionalista que predica da razão humana isolada uma incapacidade somente remediada pela autoridade da razão geral, esta falsidade Donoso parece tê-la percebido. Com efeito, como poderia um conjunto de juízos necessariamente incertos ser critério de certeza? Donoso parece concluir: a razão geral é tão absolutamente incapaz quanto a razão individual; mas não é só… Para Donoso Cortés, a inteligência do homem decaído não é somente falível: pior do que isso, ela tende quase irresistivelmente à falsidade. Diz o Autor do Ensayo:

Entre a verdade e a razão humana, depois da prevaricação do homem, Deus pôs uma repugnância imortal e uma repulsão invencível […]. Por isso, quando a verdade se põe diante de seus olhos, imediatamente começa por negá-la; e negá-la é afirmar-se a si próprio na qualidade de soberano independente […].
Pelo contrário, entre a razão humana e o absurdo há uma afinidade secreta, um parentesco estreitíssimo. O pecado os uniu com o vínculo de um indissolúvel matrimônio [57].

24. E, contudo, resta uma dúvida de difícil solução: se Donoso não atribui infalibilidade ao consentimento universal, onde se encontra seu tradicionalismo? Afinal — lembremo-nos da definição de De Maria S.J. (cf. a. I, §I, n. 7) e de tudo o que até aqui temos aprendido —, a autoridade do consentimento universal decorre do magistério externo e, em última instância, da Revelação primitiva; e o sistema tradicionalista (ou pseudotradicionalista, como diz o Pe. Gaduel) aí está. Ouçamos com paciência uma vez mais o nosso Marquês:

Os gentios tiveram notícia deste dogma supremo, como a tiveram mais ou menos cabal, mais ou menos cumprida com respeito a todos os dogmas católicos. Em todas as zonas, em todos os tempos, e entre todas as raças humanas se conservou uma fé imortal em uma transformação futura, tão radical e soberana, que tornaria em um para sempre o Criador e sua criatura, a natureza humana e a divina. Já na era paradisíaca, o inimigo do gênero humano falou a nossos primeiros pais sobre serem deuses. Depois da prevaricação e da queda, os homens levaram esta tradição prodigiosa até aos últimos remates do mundo: não há erudito que não a encontre no fundo de todas as teologias, por pouco que se aprofunde nelas. A diferença entre o dogma puríssimo conservado na teologia católica e o dogma alterado por tradições humanas está na maneira de chegar a esta transformação suprema e de alcançar este fim soberano.
[…]
Nosso Senhor Jesus Cristo não venceu o mundo com a verdade. A verdade essencial do Cristianismo estava no Antigo como no Novo Testamento, porque foi sempre una, eterna idêntica a si mesma. Esta verdade que eternamente esteve no seio de Deus foi revelada ao homem, infundida em seu espírito e depositada na história, desde que ressoou no mundo a primeira palavra divina [58]

Abandonada a suas próprias forças, a razão — individual ou geral — não pode alcançar a verdade, por isso necessita do socorro das verdades contidas naquela Revelação primeva; porém, como a razão sempre tenderá ao erro, mesmo a transmissão das verdades reveladas está comprometida quando depende tão somente do homem: daí o paganismo. Ora, em um primeiro momento poderíamos pensar que, se a fraqueza da inteligência humana decaída é tão absoluta que compromete necessariamente até mesmo a tradição, estamos diante não mais de um tradicionalismo, mas de um fideísmo.

Repita-se: a maneira como foi vazado o Ensayo torna difícil descobrir qual é de fato o pensamento de Donoso. Ora ele nos coloca diante de um fideísta, ora diante de um tradicionalista: já puro, já mitigado… Não obstante, o que as citações nos mostram, e com toda evidência, é a estreita ligação entre o tradicionalismo e o pensamento do Marquês. De onde mais, por exemplo, teria haurido esta ideia de que os pagãos conheciam, conquanto imperfeitamente, todos os dogmas cristãos? Dos cabalistas cristãos da Renascença? Dificilmente. Aprendeu com o primeiro Lamennais, com Joseph de Maistre e com os outros tradicionalistas, o que — hélas! — é perfeitamente natural, pois não era só entre os franceses que esses autores gozavam de autoridade doutrinal.

Até aqui temos falado apenas do Ensayo. Há, todavia, uma outra obra de Donoso, não publicada em vida, que afasta toda sombra de dúvida quanto à influência do tradicionalismo; falo dos Estudios sobre la historia (ao que parece, publicados pela primeira vez na edição de 1854 de suas obras completas). Escreve o Marquês de Valdegamas:

Minhas opiniões, diz-se, são contrárias à filosofia e à razão; mas eu pergunto: A qual razão e a qual filosofia são minhas opiniões contrárias? Porque a razão, tal como saiu das mãos de Deus, e a filosofia, tal como saiu da religião católica, que é sua mãe, são para mim coisas veneráveis e santas. Se por razão se entende a faculdade que Deus deu ao homem de receber e de compreender o que lhe revela, e de tirar do que lhe foi revelado consequências proveitosas para a vida e para a sociedade, eu acato e venero, como uma das obras-primas de Deus, a razão humana. Se por razão se entende a faculdade de inventar a verdade, ou a de descobrir aquelas verdades fundamentais que são mães de todas as outras, sem o auxílio da revelação divina, então não somente não a venero e não a acato, senão que a nego resolutamente.
Se por filosofia se entende a ciência que consiste em reduzir a sistema e a método as verdades fundamentais, deste ou daquele gênero, que nos foram reveladas; em ordená-las entre si de maneira que formem um harmônico e luminoso conjunto; em assinalar as relações em que estão umas com respeito às outras; e em tirar de seu fecundíssimo seio outras verdades secundárias que podem servir de ensinamento à sociedade e ao homem, acato e venero a filosofia como uma coisa que honra e enaltece o gênero humano […]. Mas se por filosofia se entende a ciência que consiste em conhecer a Deus sem o auxílio de Deus, [conhecer] o homem sem o auxílio daquele que o criou, e [conhecer] a sociedade sem o auxílio daquele que silenciosamente a governa; se por filosofia se entende a ciência que consiste em uma tríplice criação, a criação divina, a criação social e a criação humana, eu nego resolutamente essa criação, essa ciência e essa filosofia. Isto e não outra coisa é o que nego: o que quer dizer que nego todos os sistemas racionalistas, os quais repousam neste princípio absurdo, a saber: que a razão é independente de Deus, e é competente para tudo [59].

Donoso!… Ainda no mesmo livro, discorrendo sobre a linguagem, diz:

No mesmo erro caíram os que não conseguiram ver na linguagem senão uma invenção humana. A linguagem não é uma coisa distinta e separada do pensamento: é o pensamento mesmo, considerado em sua forma essencial e invariável: e assim como um ser, considerado em sua existência individual e concreta, não pode se separar nunca da forma que o circunscreve, pela mesma razão o pensamento do homem não pode ser considerado como existindo individual e concretamente senão [enquanto] limitado e circunscrito pela palavra. O homem ocupado em criar a linguagem é tão absurdo como o homem que se ocupa de inventar a sociedade [60].

Precisamente o que disse o Conde de Maistre. E finalmente cito Villafañe, que acerca do assunto afirmou:

Que a obra de maturidade de Donoso tenha sido influenciada pelos tradicionalistas franceses não é preciso prová-lo, porque basta ler os Estudios sobre la historia e o Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo (em que cita 25 vezes De Maistre; 41, De Bonald; e 13, o Lamennais da primeira época) para concluí-lo com evidência [61].

§VI
Alguns outros tradicionalistas [↵]


25. Nos parágrafos que se seguem, estudaremos alguns outros autores; não todos, infelizmente: poder-se-ia falar sobre Pascal, sobre Huet, sobre os românticos, sobre Chateaubriand, sobre Bonnetty, sobre Bautain, sobre Gerbet e os outros mennaisianos, sobre Ballanche, sobre Bensa, sobre os ontologistas, enfim, sobre muitos autores, dentro e fora da França, todos de algum modo vinculados ao tradicionalismo revelacionista. Escolhi, no entanto, apenas três que me parecem de maior interesse. Veremo-los muito brevemente.

26. O tradicionalismo do Pe. Gioacchino Ventura di Raulica, célebre orador siciliano da Ordem dos Teatinos, nos interessa na medida em que se pretendia fundado em Santo Tomás, e a sofisticação de sua doutrina é o que leva Zigliara O.P. a considerar Ventura o defensor mais forte do tradicionalismo. Em linhas muito gerais, Ventura, partindo da tripla distinção objetiva de nossos conhecimentos [62], pergunta-se: Como é possível que nossa alma conheça tanto as realidades materiais quanto as realidades espirituais? Ao que responde com a necessidade de duas fontes de conhecimento: de um lado, o intelecto agente para as coisas sensíveis; do outro, o magistério tradicional (linguagem, Revelação primitiva) para as realidades supressensíveis. Uma intrínseca, extrínseca a outra. Donde a distinção entre “ideias” (sensíveis) e “conhecimentos” (suprassensíveis). O Pe. Ventura crê que nesta distinção reside a diferença entre o verdadeiro tradicionalismo (o seu) e o falso tradicionalismo (de De Bonald), porque, segundo o Teatino, De Bonald advoga a necessidade da tradição para o conhecimento de toda e qualquer realidade [63]. Para Ventura, a verdadeira Filosofia deve começar por um ato de fé naquelas verdades espirituais aprendidas por meio da tradição (com o que De Bonald concordaria plenamente); o que a razão fará posteriormente é examinar os conhecimentos, purificá-los se for preciso, sistematizá-los, desenvolvê-los, demonstrá-los. (Observe-se, aliás, que Ventura era liberal, um pouco à maneira do Lamennais de L’Avenir; o que mais uma vez nos mostra que o tradicionalismo pode coexistir com o liberalismo.) A despeito da falsidade desta doutrina (cf. a obra de Zigliara citada na nota 20), a seu modo ela parece ter tido um papel no reflorescimento do tomismo no século XIX.

27. Quanto a Louis Veuillot, também podem dizer-se algumas palavras. Católico exemplar, um dos grandes prosadores franceses do século XIX, e ardente defensor da Igreja, não podia ter deixado de sofrer a influência dos tradicionalistas e particularmente de Joseph de Maistre. Diz-nos o Cônego Lecigne a respeito do assunto:

Alguém da falange de L’Univers me disse um dia: “Veuillot sabia de cor quase todo o seu De Maistre”. Junto com a história da Igreja [de Rohrbacher?], o Pape e as Soirées de Saint-Pétersbourg estavam sempre à mão do grande polemista. […] Veuillot era suficientemente familiarizado com De Maistre para reconhecer, desde a primeira palavra, o som de sua voz e a nuance de seu pensamento. E está bem patente que aquele é o filho deste […]. Eles são da mesma escola teológica, a da verdade integral e da autoridade romana. Em política, Veuillot não chegará senão lentamente, à força de experiências que constituem outras tantas provações, às conclusões de J. de Maistre [64].

Porém mais do que um grande admirador do Conde, Veuillot é considerado como o único verdadeiro continuador de De Maistre na França [65].

Louis Veuillot não era filósofo nem teólogo. Nem por isso, todavia, deixou de ter escrito algumas linhas em que se pode verificar a influência do pensamento maistriano:

A sabedoria antiga não cessou de procurar pôr-se em posse da verdade, como de um bem perdido do qual a humanidade conservava a lembrança. Compararam-se os sábios do paganismo a homens ébrios que, desejando voltar para casa, batem em todas as portas e tomam todas as casas pela sua. Sempre um remanescente de razão os faz entrever o que procuram, sempre um fundo inesgotável de corrupção os faz perder o verdadeiro caminho. Sócrates cai pesadamente das alturas a que se eleva, Platão tem volúpias de que não quer abrir mão, Aristóteles não consegue se desvencilhar da matéria e lhe concede a eternidade. Mas em seus lados verdadeiramente luminosos, eles são cristãos [66].

A citação parece falar por si só. Por outro lado, é bem possível que Veuillot, ao menos na maturidade, não tenha sido adepto do tradicionalismo dito “puro” por diversas razões, como sua amizade com os jesuítas (que no século XIX eram os principais adversários dos tradicionalistas) e com D. Guéranger (que também rejeitava o tradicionalismo); mas também não é impossível que tenha aderido ao semitradicionalismo de Ventura. Seja como for, até onde tenho notícia, um exame profundo de seu pensamento ainda está por fazer.

28. Mons. Jean-Joseph Gaume (1802 – 1879), autor extremamente fecundo e diversas vezes reconhecido por seu corajoso trabalho em defesa da Religião católica, recebeu formação tradicionalista (de linha mennaisiana) no seminário de Besançon, e parece nunca tê-la abandonado totalmente (mesmo depois do Concílio Vaticano I, que condenou o tradicionalismo). Em seu livro Du catholicisme dans l’éducation (1835), que dará origem ao célebre Verme roedor (1851), sustenta teses tipicamente tradicionalistas. Mas não somente aí como no resto de suas obras, certos erros como aquela tão tradicionalista confusão entre as ordens natural e sobrenatural, parecem uma constante; neste sentido, seu Traité du Saint-Esprit (1864) oferece alguns bons exemplos. Não seria difícil demonstrar o que digo, ou seja, sua adesão a teses tradicionalistas. Furtar-me-ei, no entanto, a um maior detalhamento acerca disto para falar sobre uma das polêmicas mais importantes em que Mons. Gaume se envolveu: a chamada “questão dos clássicos”. Parece útil fazê-lo, porque, ademais de permitir que vejamos na posição de Gaume — a qual, porém, não é de todo equivocada — uma sorte de aplicação prática dos princípios tradicionalistas, dará ensejo a que se façam algumas considerações para nossos dias.

Antes de mais nada, é preciso ter em mente que Le ver rongeur des sociétés modernes e sua sequência Lettres à Mgr Dupanloup (1852) foram escritos no século XIX, e lidam com problemas da época. (Em nossos dias e em nosso país, se alguém encontrar algum aluno do Ensino Médio que saiba quem foi Virgílio já será uma vitória; o problema da Educação hoje é bem outro.) Ao que tudo indica, a questão foi levantada por Bonnetty, e dizia respeito ao ensino da Filosofia e da Teologia nos seminários, quer dizer: “a Filosofia e a Teologia racionalistas dos escolásticos”, “a Filosofia paganizante de Platão e de Aristóteles”, etc. Mons. Gaume, um pouco menos exagerado, em seus livros — de que faço uma exposição muito simplificada —, defende que na Idade Média não se estudavam senão os autores cristãos, e por isso a sociedade era cristã; mas na Renascença (séc. XVI) os autores pagãos foram introduzidos nas escolas católicas. A partir de então, introduzido o paganismo na formação da juventude, a sociedade começa a tornar-se pagã: donde a imoralidade, o despotismo, o comunismo, o racionalismo, as revoluções liberais e o anarquismo, enfim, a apostasia. Ora — conclui Mons. Gaume —, se a origem de todos esses problemas é a paganização da Educação, é preciso recristianizá-la, substituindo os autores pagãos pelos autores cristãos quase totalmente; os clássicos pagãos só poderão ser estudados nas classes avançadas.

A polêmica foi bastante acalorada e dividiu a França em dois partidos: o de Mons. Gaume — minoritário, ao que parece —, em torno de quem se reuniam Veuillot e seu L‘Univers, Mons. Parisis, Mons. de Ségur e outros católicos ultramontanos ilustres; o outro time era o de Mons. Dupanloup, do lado de quem lutaram bons católicos, como D. Guéranger, mas também os galicanos e os liberais. Para dar fim à discussão, o Papa Pio IX endereçou ao clero francês a encíclica Inter multiplices (1853), na qual exorta a que aos jovens seminaristas sejam ensinadas tanto as mais perfeitas obras dos Padres quanto as melhores obras pagãs (expurgadas de seus erros). Sobre a encíclica, disse o Pe. Burninchon S.J.:

Assumindo que houvesse “integristas” de um ou de outro lado, somente estes poderiam se sentir condenados; mas nem os campeões dos clássicos pagãos excluíam os autores cristãos, nem os partidários da “revolução” [gaumista; a expressão é do próprio Mons. Gaume] pretendiam expulsar completamente os modelos pagãos. De um lado como do outro se podia, pois, tomar para si a fórmula da encíclica; ademais, ela não visava expressamente senão o ensino dos futuros clérigos. Compreende-se, assim, que ela não trouxe ao debate uma solução definitiva [67].

A disputa parece um pouco trivial. De qualquer modo, a tese de Mons. Gaume é problemática [68]. Em primeiro lugar, diga-se que já fora sustentada antes: por Juliano, o Apóstata, por Lutero e por muitos jansenistas notáveis, como escreveu o Pe. Roothaan S.J. (em uma carta de 1851 citada por Burninchon). Isto já diz muita coisa. Ademais, a tese parece fundar-se na inadvertência de que na Idade Média não se estudavam os clássicos pagãos, ou pelo menos se estudavam pouco. Muito pelo contrário, esses clássicos só se encontram hoje graças ao zelo dos monges da Idade Média, e eles, os pagãos, eram muito estudados pelos cristãos. Além disso, ainda antes da Idade Média, as crianças católicas (não todas, obviamente), desde a mais tenra idade, aprendiam os clássicos pagãos. Que dizer, então, da Filosofia do Doutor Comum da Igreja, grandemente devedora de Aristóteles e de Platão? O mesmo Doutor que exortava a que não olhássemos para quem disse, mas para o que foi dito com razão. Que dizer dos Padres, que faziam o neoplatonismo pagão servir à Teologia então nascente, e que se valiam da Retórica pagã para defender a Religião? A Igreja não só autorizou o uso das melhores obras pagãs, também não só aprovou e elogiou quem o fazia corretamente, não somente recomendou, mas chegou mesmo a ordená-lo em algumas ocasiões. É preciso reconhecer o que há de bom nos autores antigos e tirar proveito, deixando de lado o que houver de mau. Parece uma questão não apenas de bom-senso como também de ter a humildade — tão medieval, diga-se de passagem — de não desprezar aquilo que os antigos fizeram bem. Ademais, quem disse que Deus, scientiarum Dominus, não dispensou graças atuais — empurrõezinhos, por assim dizer — a um Sócrates, ou a um Cícero, por exemplo, para que pudessem fazer tudo aquilo de muitíssimo proveitoso que de fato fizeram para as ciências (a Teologia inclusive), para as artes, etc.? Não repuga à fé admitir esta possibilidade.

“Mas isto tudo é uma questão de duzentos anos de idade”, poder-se-ia dizer. Ao que concedo de bom grado, fazendo, porém, a ressalva de que ter duzentos anos não significa estar morta: a questão permanece viva entre nós, com outra aparência, é verdade, mas o fundo é o mesmo. (E novamente vemos quão semelhante ao nosso foi aquele século XIX.) Com efeito, nos meios católicos atuais digladiam-se duas correntes: 1) a que defende a necessidade de ler, não só os pagãos antigos, mas também os pagãos modernos, imorais ou não, pouco importa, desde que sejam escritores habilidosos; 2) a que sustenta que as artes — ou pelo menos algumas delas — são essencialmente más. Como se vê, em ambos os campos se tem aquilo que o Pe. Burninchon caracterizaria como “integrismo” [69]. Não sendo possível tratar o assunto com a detença que merece, pode-se por ora resolvê-lo com aquele princípio, in medio stat virtus: com efeito, a Igreja recomenda e incentiva a boa arte, o que não poderia fazer se a arte (literária, por exemplo, ou cinematográfica) fosse essencialmente má; mas também sempre condenou a má arte, razão por que ninguém deve ser negligente em evitá-la. Se desde há muitos anos as artes são extremamente prejudiciais aos católicos, isto não quer dizer que toda arte seja má, até porque, sendo o mal uma privação, só pode dar-se no bem, assim como a janela só pode dar-se na parede: se a janela crescer demais, então já não haverá nem janela nem parede [70].

De volta ao tradicionalismo, já se pode perceber a que excessos ele efetivamente conduziu. Esta falta de confiança na inteligência acaba se estendendo, de algum modo, a todos os domínios. Assim, a virtude dos antigos pagãos, que se esqueceram da tradição, não é virtude, sua arte não é verdadeira arte, etc. Por isso se encontra em alguns tradicionalistas um desprezo algo irracional contra os antigos. Como não vê-lo, por exemplo, quando Hello diz que “em Cícero a prosa não se recorda mais da Palavra e se transforma na retórica” [71]? De qualquer modo, o século XIX era ainda privilegiado em relação ao nosso: ainda não era absurdo falar em superioridade moral dos homens de então sobre os gregos e sobre os romanos. Hoje, todavia, seria quase loucura dizê-lo. Com efeito, se é muito verdadeiro o fato de que a sociedade tem se tornado mais e mais pagã desde a Renascença, não é menos verdadeiro que a animalidade a que foram reduzidos os homens de nossos dias está muito mais para aborígine do que para grega ou romana…


§VII
O mistério da Revelação primitiva [↵]


29. Até agora, falei algumas vezes sobre a Revelação primitiva ou primeva dos tradicionalistas como se me referisse simplesmente às verdades que Deus comunicou a nossos primeiros pais no contexto de sua criação; em outros momentos, vimos que o entendimento que os tradicionalistas têm desta Revelação é devedor da teosofia em alguma medida. Sempre, no entanto, se tem a sensação de que o assunto tem algo de nebuloso, de obscuro, como se faltasse algo a explicar, ou como se algo estivesse fora de seu devido lugar… Qual será a “clef” deste “grand mystère”? Sem dúvida, trata-se de um ponto fundamental para todo o tradicionalismo. Tentemos dar-lhe algum aprofundamento. (Não levo em consideração aqui os desenvolvimentos “antropológicos” que à referida doutrina deram, no século XX, o Pe. Wilhelm Schmidt S.V.D. e seus discípulos; também não levo em conta o que dela disseram os teólogos católicos da Escola de Tubinga.)

30. É muito difícil estabelecer o momento em que a sistematização da Revelação primitiva surgiu. Alguns autores associam a Lamennais seu primeiro tratamento, porém podemos dizer com segurança que isto é incorreto. Lamennais a tornará muito conhecida, e lhe dará algum desenvolvimento, mas o fato é que tese já se encontra — em termos um pouco diferentes — nos Moeurs des sauvages ameriquains, comparées aux moeurs des premiers temps (1724) do Pe. Lafitau (1681 – 1746), missionário jesuíta; em seu livro, o Pe. Lafitau formula-a em resposta a uma tese similar que o erudito bispo fideísta Pierre-Daniel Huet (1630 – 1721) sustenta em sua famosa e controversa Demonstratio Evangelica, de 1679 [72]. Lafitau, contudo, nos diz que seu sistema não deve parecer uma novidade, o que leva a crer que já o professaram outros autores. Confesso que, em um primeiro momento, não pude ir muito mais longe do que isso. Felizmente, Fedeli nos dá uma valiosa pista sobre a origem desta tese; ouçamo-lo:

Por outro lado, a idéia de que os pagãos acreditavam — embora imperfeitamente — nos dogmas católicos é típica dos românticos e da tese tradicionalista segundo a qual teria havido uma revelação primitiva da qual todos os pagãos guardam alguma memória, enquanto a Igreja a mantém em sua pureza.
Os cabalistas cristãos do Renascimento e os posteriores sempre se fundaram nessa mesma falsa tese: entre a Igreja e o paganismo haveria somente uma diferença de densidade e explicitação doutrinária [73].

Com efeito, já Marcílio Ficino (1433 – 1499) falava de uma prisca theologia, a qual, ensinada tradicionalmente pelos sábios antigos (como Zoroastro, Orfeu e Pitágoras), conservou a unidade da Revelação adâmica; ideia muito semelhante é a philosophia perennis de Agostinho Steuco (1497 – 1548), adotada depois por Leibniz (1646 – 1716). E para confirmar o dito por Fedeli acerca da relação histórica entre a Cabala e o sistema da Revelação primitiva, houve no século XIX um rabino convertido ao catolicismo, Paul-Louis-Bernard Drach (1791 – 1865), colaborador dos Annales de Bonnetty, que propugnava o uso apologético da “Cabala boa” — ou seja, “expurgada” —, da qual, segundo Drach, também faziam uso Pico della Mirandola (1463 – 1494) — discípulo de Marcílio Ficino — e outros renascentistas [74]. Com tudo isso, quero fazer notar sobretudo que se trata de uma sistematização moderna, porque, se é verdade que ideia análoga pode ser encontrada, por exemplo, nos Padres, também é verdade que neles ela jamais é mencionada nos termos renascentistas e pós-renascentistas.

31. Mas a principal fonte católica dos tradicionalistas quanto à Revelação primeva (note-se que estou fazendo abstração dos teósofos do século XVIII) foi muito provavelmente o Pe. Nicolas-Sylvestre Bergier (1718 – 1790), autor dos volumes da Encyclopédie dedicados à Teologia; essa sua contribuição, no século XIX, será publicada separadamente em várias ocasiões como Dictionnaire de théologie, ou como Dictionnaire de théologie dogmatique, etc. (aparentemente, tornou-se uma espécie de manual de Teologia dos seminaristas de então). No verbete “Révélation”, escrito sobretudo para refutar a “religião natural” dos deístas e demonstrar a origem divina do catolicismo, encontramos já a Revelação primitiva formulada em termos próximos à formulação tradicionalista [75] — o que não significa que Bergier fôsse tradicionalista no sentido gnosiológico (sentido que, repita-se, me parece o mais adequado em se tratando dos revelacionistas), embora no verbete se diga que “propriamente falando, a razão não é outra coisa que a faculdade de receber instruções”…

Para os tradicionalistas, sendo o homem incapaz de alcançar verdades naturais pelas tão só luzes da razão, incapaz de inventar uma língua, etc., etc., era preciso que tudo isso tivesse sido ensinado por Deus a Adão através de uma revelação — a qual, para os tradicionalistas, precisaria ser bastante abrangente. Ora, saber por revelação, quer dizer, ser ensinado supõe previamente a posse racional de certas verdades primeiras: omnis doctrina et omnis disciplina intellectiva fit ex praeexistenti cognitione. Ademais, quando teria Deus feito esta revelação? No momento da criação? Mas como Adão, no momento mesmo de sua criação, poderia aprender alguma coisa? É suficiente dizer — e de fato chegam os tradicionalistas a dizê-lo! — que a razão não é senão “a faculdade de sentir a verdade quando ela se manifesta”? Estas e outras dificuldades encontram os tradicionalistas em seu afã de estabelecer, contra os racionalistas, a importância do ensinamento e da tradição. Aqui, acabam tendo de multiplicar e multiplicar milagres na criação — sem necessidade e sem autoridade, e todavia in prima rerum creatione non sunt miracula vel praeternaturalia opera sine evidenti necessitate et auctoritate asserenda. Em verdade não foi por revelação que Adão recebeu todos esses conhecimentos naturais, mas por infusão, ou seja, sem que Deus houvesse ensinado — e assim somos poupados de todos aqueles inconvenientes. Mas até aqui, só falei sobre o conhecimento que nossos primeiros pais possuíam das verdades naturais; quanto às verdades sobrenaturais, a questão é delicadíssima. Não se pode questionar o fato de que Adão (e Noé, por razões óbvias) tenha tido conhecimentos sobrenaturais e que os tenha recebido por revelação e transmitido aos pósteros. Em outras palavras, houve, certamente, uma Revelação primitiva. A grande diferença entre a explicação cabalista e a católica deste fato parece residir principalmente no conteúdo desta Revelação; e para os tradicionalistas, o problema também parece estar na questão da amplitude dela, se assim posso me exprimir. Mas ficam por fazer muitos aprofundamentos. Como resolver, por exemplo, a questão das “semina Verbi” diante da constatação da transmissão dessas verdades sobrenaturais? Não eram demônios os deuses dos gentios (cf. Sl XCV,5 e 1Cor X,20)? Não está implícito em Rm I,18-23, ou ainda em At XIV,14-17, que o conhecimento de Deus que os pagãos poderiam ter provém exclusivamente da razão? Como entender o dito por Santo Tomás: “[Primo] herbam fructificat in lege naturae; postmodum spicas in lege Moysi; postea plenum frumentum, in Evangelio” [76]? Para tudo isso, Santo Tomás parece apresentar um belo princípio de solução em IIa-IIae, q. 2, aa. 7 e 8. Não posso senão aludir a isso tudo, pois que a gravidade dessas indagações reclama a profundidade de um teólogo e um trabalho de maior fôlego: altissimum enim negotium est huiusmodi, et maioris egens inquisitionis.

32. De minha parte, posso dizer que essas perguntas, ainda que aqui tenham ficado sem resposta, nos ajudam perceber certos pontos de contato que há entre o tradicionalismo revelacionista do século XIX de um lado, e, do outro, escolas que em um primeiro momento pareceriam tão distantes dele, como o modernismo. Difícil não percebê-lo diante da descrição do modernista apologeta que dá São Pio X na Pascendi (1907). Longe de mim insinuar que haja identidade entre o tradicionalismo e o modernismo; nem digo que há entre um e outro uma relação histórica íntima e certa. Mas há coincidências importantes, e talvez os tradicionalistas tenham dado alguma contribuição na preparação do terreno filosófico e teológico modernista. Não se afirma comumente, por exemplo, que foi a “Nouvelle Théologie” que estendeu arbitrariamente as semina Verbi da patrística de modo a incluir nelas as religiões pagãs? E não é com o tradicionalismo que parece começar — ou pelo menos popularizar-se entre católicos — um procedimento análogo? E quanto ao fato de a base filosófica do modernismo ser o agnosticismo? Sem dúvida, corro o risco de parecer superficial fazendo comparações como estas; é importante, todavia, fazê-las, porque podem ser úteis para alguém que queira investigar o assunto com profundidade. Ademais, essas perguntas também ajudam a ver como sistemas que a princípio parecem contraditórios podem acomodar-se sem muita dificuldade àquela corrente antirracionalista de que falei no início (cf. a. I, §I, nn. 5 e 6).

33. Mas nosso assunto não é o modernismo (apesar de curiosamente a palavra “modernismo” ter sido usada em 1881 por Charles Périn, muito antes da Pascendi, para referir-se ao liberalismo de Lamennais). A esta altura creio já ser possível dizer que o tradicionalismo foi um erro perigoso para os católicos. Vejamos, portanto, o que disse a Igreja a respeito.


§VIII
A Igreja condenou o tradicionalismo revelacionista? [↵]


34. Sim, condenou. Praticamente toda a literatura sobre o tradicionalismo nos fala que o golpe de misericórdia foi a constituição dogmática Dei Filius (1870), do Concílio Vaticano I (1869-1870). Como devemos entendê-lo?

Antes de mais nada, vejamos algumas outras censuras (não todas) que a Igreja fez ao tradicionalismo. A primeira parece ter sido a Censura de Toulouse, de 1832, a qual já estudamos; ali se censuram dezenas de proposições mennaisianas (lembrando que a palavra “tradicionalista” surgiu muitos anos depois, em 1849).

Depois, tem-se a encíclica Singulari Nos, de 1834, que condena as Paroles d’un croyant de Lamennais; vejamos o que disse Gregório XVI na supradita encíclica:

Também compreendeis bem, veneráveis irmãos, que Nós aqui falamos também daquele falacioso sistema filosófico, difundido há não muito tempo e de todo reprovável, segundo o qual, por um desprezível e desenfreado desejo de novidade, a verdade não se procura onde ela se encontra com certeza e, negligenciando as santas e apostólicas tradições, aceitam-se outras doutrinas inúteis, fúteis, incertas, não aprovadas pela Igreja, com as quais homens muito insensatos acreditam tortamente que a própria verdade pode ser apoiada e sustentada [77].

Parece bastante claro que o papa falava do “sistema do senso comum”, que procura a verdade, não nas Tradições apostólicas, mas na autoridade de uma tradição que se inicia pela Revelação primitiva (concebida de modo bastante peculiar), cujas verdades seriam veiculadas pela palavra e constituiriam a razão geral do gênero humano. Já vimos que o fundo do pensamento de Lamennais foi sempre o mesmo, antes e depois das condenações.

Depois, temos alguns concílios provinciais franceses das décadas de 1840 e de 1850. Eis o que disseram sobre o assunto, por exemplo, os Padres do Concílio de Rennes (1849):

Finalmente, nós não deixaremos sem advertências os autores mesmos que escrevem sobre matérias de história e de filosofia. Que se guardem com cuidado deste falacioso sistema de filosofia muito recentemente introduzido entre nós, e que nós declaramos de todo censurável, como o declarou o soberano pontífice Gregório XVI. Pois que nas obras de certos autores recentes se percebe ainda vestígios muito numerosos desse falso sistema: nós nos referimos a estes homens que gostam tanto da autoridade, que, como dizem eles, se ela não lhes fala, eles não podem gozar de nenhuma certeza, e que elevando a fé e rebaixando a razão outro tanto, minam ao mesmo tempo os fundamentos da fé e da razão, e acabariam (Deus nos guarde de tão deplorável infortúnio!) por perder inteiramente uma e outra [78].

Têm-se também as censuras feitas a Bonnetty pela Sagrada Congregação do Index em 1855. São quatro proposições às quais Bonnetty deveria subscrever (e ele o fez):

I. Ainda que a Fé esteja acima da Razão, não pode haver jamais entre elas qualquer verdadeira dissensão, qualquer desacordo, pois que uma e outra decorrem da única e mesma fonte imutável da verdade, Deus sumamente bom e grande, e que por isso se ajudam mutuamente. (Encíclica de Pio IX, de 9 de novembro de 1846).
II. O raciocínio pode provar com certeza a existência de Deus, a espiritualidade da alma, a liberdade do homem. A Fé é posterior à Revelação, e por consequência não se pode convenientemente alegá-la para provar a existência de Deus contra o ateu, para provar a espiritualidade e a liberdade da alma racional contra o sectário do naturalismo e do fatalismo. (Proposição subscrita pelo Sr. Bautain, em 8 de setembro de 1840).
III. O uso da Razão precede a Fé, e, com a ajuda da Revelação e da Graça, conduz o homem à Fé. (Proposição subscrita pelo Sr. Bautain, em 8 de setembro de 1840).
IV. O método usado por Santo Tomás, por São Boaventura e por outros escolásticos depois deles não conduz ao racionalismo e não foi a causa de que, nas escolas contemporâneas, a filosofia tenha caído no naturalismo e no panteísmo. Consequentemente, esses doutores e mestres não podem ser censurados por usar aquele método, visto sobretudo que o fizeram com a aprovação, ao menos tácita, da Igreja. (Proposição contrária a muitas proposições do Sr. Bonnetty) [79].

35. Falemos, agora, um pouco acerca das relações entre a Dei Filius e o tradicionalismo. Diz-nos ela no capítulo intitulado De Revelatione:

A mesma Santa Madre Igreja professa e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana através das coisas criadas; “com efeito, as coisas invisíveis dele, conhecidas, depois da criação do mundo, pelas coisas que foram feitas, tornaram-se visíveis” (Rm I,20); no entanto, agradou à sua bondade e à sua sabedoria revelar-se a si mesmo e os decretos eternos de sua vontade ao gênero humano por uma outra via, a sobrenatural, pelo que diz o Apóstolo: “Deus, tendo outrora falado muitas vezes e de muitos modos a nossos pais pelos profetas, ultimamente, nestes dias, falou-nos pelo Filho” (Hb I,1-2).
Cânone 1. Se alguém disser que o Deus único e verdadeiro, nosso Criador e Senhor, não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, através da coisas criadas: seja anátema [80].

Quando se afirmou a possibilidade de conhecermos com certeza, usando as tão só luzes da razão, a Deus através das coisas criadas — trata-se do raciocínio quia ou a posteriori, do efeito para a causa —, um dos erros que o Concílio tinha em vista era exatamente o tradicionalismo. O Pe. Ramière S.J. informa que alguns adversários do tradicionalismo sugeriram que ao cânone citado se acrescentasse a seguinte expressão: “citra positivam de divinitate ei traditam doctrinam”, pelo que se quer rejeitar a necessidade absoluta do ensinamento no que diz respeito ao conhecimento que podemos ter de Deus; mas esta adição não foi aceita [81] (também foram rejeitadas as emendas contrárias, ou seja, que queriam que o tradicionalismo não fosse objeto de discussão, mesmo indireta). O trecho citado da Dei Filius põe fim ao tradicionalismo puro; mas, segundo fontes confiáveis (é ainda Ramière que nos informa), o Concílio preferiu não condenar o tradicionalismo mitigado expressamente, e quiseram os tradicionalistas moderados ver neste fato a aprovação desta corrente tradicionalista pela Igreja, o que é um contrassenso. Conceda-se, no entanto, que era mesmo possível a um tradicionalista mitigado interpretar em seu favor — erradamente, porém — o pensamento do Concílio, porque, com efeito, lembremo-nos de que Ventura ensinava que, sim, a razão pode demonstrar a existência de Deus — mas somente depois de ter recebido esta verdade pela tradição. Era outro, naturalmente, o pensamento dos Padres do Concílio. O Schema elaborado pela Deputação da Fé e distribuída aos Padres trazia a seguinte nota:

Quanto ao que concerne o tradicionalismo, pareceu suficiente pôr um princípio que o exclui eficazmente. Este princípio é o seguinte: na natureza racional do homem se encontra o poder de conhecer a Deus com certeza, através das coisas criadas. Se alguém disser que é completamente impossível ao homem — mesmo que ele possua sem empecilhos o poder de raciocinar — chegar a um conhecimento certo de Deus sem a transmissão de um ensinamento positivo sobre Deus, este alguém negará aquele princípio [82].

E neste mesmo sentido disse Zigliara O.P. (sobre o semitradicionalismo de Ventura) que, se o intelecto humano, não iluminado pela Revelação, for capaz descobrir um reflexo da glória de Deus por meio das criaturas (e o é), o tradicionalismo desmorona.

Ademais, acrescenta o Pe. Vacant que a Dei Filius, segundo Mons. Gasser (relator da Deputação da Fé), viria com uma nota trazendo todos os atos da Santa Sé contra os erros relacionados às questões tratadas, e que esta nota se aplicaria a todas as formas de tradicionalismo [83]. E diga-se finalmente que o tradicionalismo mitigado havia sido condenado anteriormente pelo Santo Ofício, na década de 1860, por ocasião das disputas envolvendo o ontologismo de Ubaghs e de seus discípulos louvainenses.

36. Mas o fato é que, mesmo depois de tantas censuras, e ainda depois da Dei Filius, o tradicionalismo continuou sendo sustentado, talvez sem o mesmo vigor, mas continuou. Por isso, parece-me que o golpe de misericórdia contra o tradicionalismo não foi a constituição dogmática Dei Filius — mas a encíclica Aeterni Patris (1879), com a qual Leão XIII mostrou aos filósofos católicos aquele de quem devem ser fiéis discípulos: o Sol da Igreja e seu Doutor Comum, Santo Tomás de Aquino. A partir de então, o tradicionalismo vai sendo mais e mais abandonado pelos católicos (nunca o foi completamente, e talvez por isso “golpe de misericórdia” seja uma expressão demasiado forte); mas o estrago estava feito, e, além disso, nada impedirá que filósofos não católicos se apropriem dos erros tradicionalistas.


§IX
a) Tradicionalismo e neotomismo [↵]


37. Vimos anteriormente que o tomismo nunca deixou de ser cultivado (cf. nota 3); mas a anarquia intelectual que as seitas antitomistas criaram, no fim da Idade Média, fez com que ele, o tomismo, aos poucos caísse no esquecimento e, depois de um breve período de grande fertilidade na Renascença, passasse à marginalidade sobretudo a partir do século XVII. (Mas para que se tenha das vicissitudes do tomismo uma ideia mais fiel à realidade, há que considerar também — ou desconsiderar — a ignorância e a parcialidade da historiografia filosófica, digamos, oficial, que é decididamente antitomista e anticatólica.) Refloresceu o pensamento de Santo Tomás no século XIX, mas isto não se deu de uma hora para outra; foi um processo longo, do qual a encíclica de Leão XIII será o cume e ao mesmo tempo o impulso decisivo. Chamo a atenção para este fato para fazer perceber — ao contrário do que poderiam pensar alguns — que a encíclica não se reduz à imposição (palavra tão hipocritamente odiada hoje) do tomismo aos filósofos católicos; Leão XIII também fez sancionar e incentivar um espírito que desde há bastante tempo crescia e frutificava providencialmente na Igreja, como muito bem disse Canals Vidal. A escola, por assim dizer, saída da esteira da Aeterni Patris ficou conhecida como “neotomismo” (por vezes é também chamada “neoescolástica”, “terceira escolástica”, etc.) Dizer “escola”, contudo, pode transmitir a ideia de uma unidade doutrinal entre os neotomistas, o que é falso; havia enormes diferenças entre eles.

Ainda que seja assunto muito interessante, não se pretende por ora traçar uma história do neotomismo; mas o fato é que entre o neotomismo e o tradicionalismo há uma relação um pouco mais estreita do que normalmente se supõe. O que pensar quando, por exemplo, um tomista da envergadura do Pe. Pègues O.P. atribui a De Maistre e a De Bonald um tomismo de primeira ordem? Voltemos, pois, àquele período “pré-Aeterni Patris” em que o tomismo estava ainda ensaiando sair da clandestinidade através da obra do Pe. Vincenzo Buzzetti (1777 – 1824), provavelmente influenciado pela monumental Summa philosophica (1777) de Roselli O.P. Se se tem em vista a amistosa correspondência entre o Pe. Buzzetti e o Pe. Lamennais no início da década de 1820, em que o primeiro sugere alguns reparos ao Essai de Lamennais, e ainda se se considera a postura crítica que, em seu tratado De Religione, o mesmo Pe. Buzzetti adota em relação à criteriologia mennaisiana [84], podemos concluir que o neotomismo, desde o início, teve participação nas discussões em torno do tradicionalismo. Os irmãos Domenico e Serafino Sordi (1790 – 1880, 1793 – 1865), ambos jesuítas e discípulos de Buzzetti, serão também nomes muito importantes; Serafino trará o Pe. Taparelli d’Azeglio S.J. (1793 – 1862) para o tomismo, e este último, em colaboração com o Pe. Liberatore S.J. (1810 – 1892) e com outros jesuítas, fundará em 1850 a famosa Civiltà Cattolica. É, em grande medida, graças a este periódico que o tomismo saiu da clandestinidade no Colégio Romano (futura Pontifícia Universidade Gregoriana). É preciso dizer, porém, que o tomismo de então não era puro; ainda havia, por exemplo, resquícios de suarezismo em alguns destes corajosos precursores. Ademais, a maioria deles inicialmente não era tomista, mas eclética, e foi evoluindo aos poucos no sentido de um tomismo mais estrito. Agora: no que diz respeito às concessões de alguns neotomistas em relação ao tradicionalismo (se é que “concessões” é a melhor palavra), façam-se muito en passant duas observações: 1) no âmbito da Política, Taparelli parece inaugurar certa visão — inspirada, talvez, em De Bonald — acerca da origem do estado e da autoridade civil [85], e o faz em resposta, tanto ao contratualismo rousseauniano, quanto à tradição dos escolásticos naturalistas (Vitória, Soto, Suárez e outros [86]), tradição que de certo modo desembocará, sobretudo via suarezismo, no próprio Rousseau (sem no entanto confundir-se com ele); 2) no âmbito da Gnosiologia, Garrigou-Lagrange, em resposta ao irracionalismo bergsoniano, introduz no tomismo do século XX a doutrina do senso comum, que se define como um “conjunto de certezas primordiais da razão natural” [87]. Tudo isso, obviamente, necessita de muito aprofundamento; e determinar em que medida estas doutrinas encontram respaldo em Santo Tomás é, devido à alta complexidade filosófica que encerram, algo a que nem de longe se poderia proceder neste opúsculo. Não faço senão oferecer algumas ideias para estudos mais elaborados [88].


b) Tradicionalismo e neotomismo no Brasil [↵]


38. Ao que tudo indica, o Brasil nunca foi terra fértil para a Filosofia. O “Sócrates brasileiro” é Farias Brito… O fato de o neotomismo ter chegado tão cedo a nossas terras é uma das ironias da história, pois os brasileiros parecem sempre preferir o que os europeus já descartaram (o espiritismo é um exemplo típico), ou então aquelas modas intelectuais que já nasceram moribundas, como o positivismo e o teilhardismo. E de fato, nossos raros filósofos bons são normalmente menosprezados: em uma ocasião na qual o nome do Pe. Penido fora indicado para um importante prêmio de Filosofia, preferiram premiar um gnóstico metido a existencialista, Vicente Ferreira da Silva.

Chegou o tomismo ainda na metade do século XIX (antes da Aeterni Patris), e com vigor, na pessoa de José Soriano de Sousa (1833 – 1895). Naturalmente, foi ridicularizado pela “elite” intelectual da época: Tobias Barreto (1839 – 1889) e seu sidekick Sílvio Romero (1851 – 1914) — cujo filho Nelson Romero, ironicamente, se tornaria católico e tomista. Antes, porém, de falar sobre José Soriano, é preciso ver brevemente alguns outros autores.

39. Muitos historiadores do pensamento brasileiro, seguindo provavelmente as pegadas do Prof. Ubiratan Borges de Macedo [89], costumam identificar no século XIX do Brasil uma escola tradicionalista. Sem entrar no mérito da autoridade e da competência de Ubiratan, parece algo problemática sua abordagem: com “tradicionalismo” o Prof. Ubiratan se refere a uma ideologia, entendida por sua vez como um “sistema global de interpretação do mundo histórico-político” (Lacroix), uma “utopia” (Mannheim), enfim, uma “religião ou fé secular” (Croce); “tradicionalismo” passa a tomar-se como sinônimo de um “conservadorismo político católico”, se assim me é permitido dizer. Neste sentido, Lamennais seria adepto de um “tradicionalismo filosófico” sem ser adepto de um “tradicionalismo político”, De Maistre seria adepto dos dois. Abordagem, a meu ver, insuficiente e demasiado simplificadora, e que acaba aumentando a confusão dos estudos sobre o(s) tradicionalismo(s), porque esta categoria, “tradicionalista”, agora muito mais abrangente, passa a ser associada tanto a tradicionalistas quanto a pensadores que nunca tiveram nada que ver com o tradicionalismo (nem mesmo com o chamado “tradicionalismo hispânico”); pensamentos essencialmente distintos quanto à Política passam a ser associados a uma mesma corrente política. Alheando-se, também, estes trabalhos historiográficos a um estudo mais aprofundado dos documentos do magistério eclesiástico — e, em última instância, da Teologia Sagrada —, e levando, ademais, em consideração os documentos conciliares e pós-conciliares — que rejeitam a Doutrina Social da Igreja —, não parecem os sobreditos trabalhos notar que este “conservadorismo político católico” é em alguns autores a expressão da própria Doutrina Social da Igreja, e que, neste sentido, a própria Igreja é intransigentemente “tradicionalista”, daí também que a distinção que tais trabalhos operam entre “tradicionalismo” e “catolicismo” não pareça dar conta da complexidade do assunto. Além de tudo isso, já vimos que o tradicionalismo, tal como o temos estudado, não raro convivia, em um mesmo autor, com o liberalismo político; quer dizer, houve tradicionalismos liberais. Logo, parece mais conveniente tratar o tradicionalismo antes de tudo como teoria do conhecimento, e ademais como escola desprovida de um corpo doutrinal perfeitamente homogêneo, sendo, deste modo, impossível atribuir a todos os tradicionalistas as mesmas teses indiferentemente, tanto de ordem metafísica quanto de ordem política. (Sobre os tradicionalistas-perenialistas falaremos em seu momento.) Como quer que seja, nosso primeiro tradicionalista parece ter sido D. Romualdo de Seixas (1787 – 1860), arcebispo da Bahia. Diz-nos sobre ele o Prof. Ubiratan:

Defendeu os princípios tradicionalistas, no Brasil, desde muito cedo, D. Romualdo Antonio Seixas, em suas pastorais, sermões e panegíricos e demais documentos eclesiásticos, inclusive montando jornais, revistas e empresando obras e traduções que contribuíssem para sua cruzada tradicionalista antiliberal e antieclética. Exemplo disto e um dos representantes brasileiros do tradicionalismo é o compêndio de Frei Itaparica [90].

E prossegue:

Porém, o representante mais autorizado da escola no Brasil é Frei Firmino de Centelhas OFM capitão [sic; leia-se “O.F.M.Cap.”], ex-soldado carlista, que lecionou a partir de 1854 em São Paulo, e, na mesma cidade, publicou em 1864 o seu Compêndio de Filosofia Católico-Racional. Nele há uma violenta diatribe contra a filosofia, em favor da revelação, e um contínuo realçar da inutilidade da filosofia face à religião em consonância com os ensinamentos bonaldiano e manesiano [sic; leia-se “mennaisiano”] [91].

A expulsão dos jesuítas motivada pela política maçônica do Marquês de Pombal desencadeou uma grande crise no Brasil: regalismo, liberalismo, protestantismo, perseguição das ordens religiosas, má formação dos sacerdotes, a chamada “Questão Religiosa”, etc. É neste contexto de crise (refiro-me aqui principalmente ao aspecto intelectual dela) que alguns eclesiásticos — como D. Romualdo, citado acima — formados fora do Brasil trouxeram consigo o tradicionalismo, com o que pretendiam reagir contra os muitos problemas de ordem doutrinal que iam se agravando, nomeadamente, o ecletismo, o positivismo e o liberalismo. E é exatamante neste mesmo contexto que os irmãos Brás Florentino Henriques de Sousa (1825 – 1870), Tarquínio Bráulio de Sousa (1829 – 1894) e José Soriano de Sousa passam a integrar a linha de frente do laicato católico ultramontano e antiliberal. José Soriano, o mais jovem, é o mais importante e tem o grande mérito de ter introduzido em nossas terras o neotomismo, com seu Compêndio de Filosofia, ordenado segundo os princípios e métodos do Doutor Angélico, S. Tomás de Aquino (1867) e, depois, com as Lições de Filosofia elementar, racional e moral (1871). Soriano é igualmente autor de numerosas obras sobre Política e sobre Direito (a maioria das quais está perdida, razão por que é difícil avaliar-lhe o pensamento em sua integralidade e madureza); também foi um jornalista fecundo, fundando, por exemplo, o jornal A União (1872 – 1873) com o propósito de defender D. Vital no contexto da Questão Religiosa. Ainda que os três irmãos, ao que parece, não tenham conseguido se desembaraçar totalmente do tradicionalismo (em especial Braz Henriques), eles representam uma fase importante do pensamento brasileiro, e nos ajudam a ver que, aqui como na Europa, o tradicionalismo foi uma das doutrinas de que o tomismo então reflorescente precisava se desvencilhar. Era difícil, principalmente para os antiliberais, furtar-se à influência dos tradicionalistas. O que se fez com alguma frequência foi o aproveitar-se dos eventuais acertos políticos dos tradicionalistas (os quais, no entanto, não eram descoberta deles, nem encontravam neles sua melhor expressão) e submetê-los a alguma readequação, inserindo-os em um corpo doutrinário sólido, no tomismo muito por exemplo. Ora, o tomismo nunca precisou disto; a encíclica Libertas praestantissimum (1888), de Leão XIII, parece ser uma prova do que digo, pois é uma encíclica bastante tomista, por assim dizer, que lidou — obviamente sem recorrer a nenhum tradicionalismo — muito melhor com o moderno problema do liberalismo do que jamais foi e seria capaz de fazer o tradicionalismo; o mesmo pode dizer-se da Quas primas (1925), de Pio XI — encíclica que, para o Pe. Calderón, é o fruto mais precioso da renovação tomista entre os teólogos. A propósito, nada mais falso do que a opinião de Ubiratan de Macedo segundo a qual, no que diz respeito a uma “cautelosa aceitação de uma outra atitude política que não a conservadora” por parte da Igreja, haveria uma linha de continuidade que começa com a Libertas praestantissimum e vai até à encíclica Pacem in terris (1963) de João XXIII; existe, isto sim, entre João XXIII e o Magistério anterior a ele, uma verdadeira ruptura em termos de Doutrina Social, que o Concílio e os papas seguintes só farão aprofundar-se.

Mas, aqui, o neotomismo não vingara, nem o tradicionalismo. Terão de esperar o século seguinte. Os parágrafos que seguem tratarão brevemente, fugindo um pouco do tema central do artigo I deste opúsculo — qual seja, o tradicionalismo do século XIX —, tratarão brevemente, eu dizia, de alguns autores brasileiros do século XX ligados aos nossos tradicionalistas do XIX.

40. Um nome importante quanto ao assunto que nos interessa — dentre alguns outros nomes que poderiam mencionar-se, como João Mendes de Almeida Júnior (1856 – 1923) — será Jackson de Figueiredo (1891 – 1928), um apóstolo dos intelectuais brasileiros de sua época. Recebeu na infância educação católica, mas logo tornou-se ateu. Bacharelou-se em Direito em 1915; aos poucos foi abandonando o materialismo e as demais diabruras acabadas em “ismo” que herdou principalmente da formação universitária, para abraçar o espiritualismo de Farias Brito (1862 – 1917), de quem foi amigo íntimo e discípulo; mas, ao contrário do mestre, ainda nutria certa simpatia para com o pensamento moral da fase mais madura de Comte. Voltou para o catolicismo em 1918, por influência de D. Sebastião Leme (1882 – 1942). Fundou em 1921 a revista A Ordem, que depois se tornou o órgão do Centro Dom Vital, fundado também por ele em 1922. Apesar de não ter sido alheio ao neotomismo, não era filósofo, pois por muitas razões não pôde entregar-se com calma à formação filosófica; também sua personalidade talvez não fosse muito condizente com isso. Era, antes de tudo, um coração, um homem de vontade, como disse D. Odilão Moura. Desde o início, a orientação de A Ordem era francamente maistriana, e criticamente maurrasiana em certos momentos. A ideia central parece ter sido, como disse Cassiano Cordi, reconduzir o positivismo então reinante no Brasil às suas verdadeiras fontes tradicionalistas (sobre estas fontes, cf. nota 17), deslaicizando-o. De fato, o positivismo possuía ainda um certo apego à ordem; mas, por ser contrário à Religião, não poderia ter o apoio dos católicos. Grosso modo, através do tradicionalismo Jackson pensou poder “batizar” o positivismo e equipar os católicos com uma doutrina segura e com uma ação política mais eficaz. Diz-nos Jackson ao analisar um livro sobre a revisão constitucional no Brasil: “Não será salva a França pelos tradicionalistas sem Deus, pelos seus Maurras etc.” [92].

Mas Jackson foi um grande católico, e, apesar da insuficiência doutrinária (Henrique de Lima Vaz o classificava como um “pascalino fundamentalmente anti-intelectualista”), era sinceramente antiliberal. Foi muito importante para o renascimento do Catolicismo no Brasil no início do século XX. Infelizmente, Jackson morreu jovem. Quem sabe se sua alma apaixonada não teria, com os anos, encontrado a paz na clara verdade do tomismo? De qualquer modo, grande parte de seus sucessores não estava à altura: muitos deles, reunidos em torno de Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983), que passou a dirigir o Centro Dom Vital, se tornaram maritainianos e modernistas. Alceu Amoroso Lima no fundo parece ter sido um católico liberal desde sempre, mas foi desabrochando aos poucos; sua oposição a Jackson no que diz respeito às relações entre as artes do belo e a Moral parece ser sintomática: nemo repente fit pessimus… Em 1937, A Ordem deixará de publicar os autores de linha mais “tradicionalista” devido à posição liberal assumida pela revista no contexto da Guerra Civil Espanhola.

41. Digam-se também algumas palavras sobre o importante Prof. Alexandre Correia (1890 – 1984), mais conhecido atualmente por sua tradução pioneira e, por assim dizer, heróica da Suma teológica do Angélico e por seus trabalhos de exegese tomista; foi um notável professor universitário e, através dele, uma considerável parte dos nossos tomistas foi iniciada na doutrina do Doutor Comum. Formou-se em Direito na Faculdade de Direito de São Paulo; decidiu, depois, complementar sua formação cursando Filosofia na Faculdade de São Bento. Concluiu seu doutorado na Universidade de Lovaina, em 1914, sob a orientação do Pe. Simon Deploige (1868 – 1927), e o tema de seu trabalho foi a Política de ninguém menos que o nosso Joseph de Maistre. Diz-nos Ubiratan de Macedo sobre a influência decisiva de Deploige sobre Correia:

Deploige ocupa, na escola de Louvain, uma posição singular: não cultiva a história do pensamento medieval, ou a criteriologia, tentando conciliar o tomismo com Descartes ou com Kant, nem sequer cultiva a psicologia experimental, tentando integrá-la na síntese tomista. Deploige é um filósofo social interessado em Durkheim e na escola histórica alemã.
O seu livro principal, Le Conflit de la Morale et la Sociologie (1912), é testemunho disso e viria a tornar-se referência obrigatória para A. Correia, condicionando seus futuros interesses [93].

Entre 1921 e 1923, nos primeiros números d’A Ordem (nn. 2, 3, 5, 12, 13, 14 e 18), Alexandre Correia, então especialista em De Maistre, consagra uma série de artigos ao pensamento político do Conde Saboiano. Ali se pretende expor a Política maistriana fazendo abstração das teses filosóficas e teológicas que De Maistre defende nas Soirées, mas Correia admite que uma exposição cabal da Política do Conde haveria de as levar em conta. Sem tapar os olhos para as fragilidades do pensamento político de De Maistre, o Prof. Correia vê nele um continuador de Bossuet e de Santo Agostinho, ademais de um aristotélico-tomista, pois que toda a Política maistriana, ao menos nos traços fundamentais, poderia ser deduzida do De regno, de Santo Tomás, e do comentário do Aquinate à Política de Aristóteles. Alexandre Correia faz ver aos positivistas que, em Política, Comte é discípulo de De Maistre; “por que”, então, pergunta o professor, “haveriam de o temer?” Com esses artigos, Correia lança as bases teóricas da revista de Jackson. Deixará mais tarde o Prof. Correia de ser, pessoalmente, um maistriano em Política? Se se considera o fato de sua tese de 1914 ter sido publicada sem alterações na década de 1960 [94], pode-se concluir que o juízo do Prof. Correia a respeito de De Maistre permaneceu o mesmo. Leiamos alguns breves trechos da tese de Alexandre Correia, citados por Ubiratan:

E para que não pairem dúvidas sobre sua posição tradicionalista, estabelece, na sua tese nº 11: “A razão por si só é incapaz de estabelecer um Direito natural”. E na de nº 8 afirma: “As ideias da escola histórica, sobretudo com a forma que lhe deu Joseph de Maistre, são admissíveis como complementar à verdadeira teoria do Direito Natural” (p. 38/9).
[…]
“Tanto é exato que de Maistre e Tomás de Aquino são pensadores da mesma linhagem” (p. 33). […] “A substância da doutrina política [de De Maistre] é verdadeira e definitiva; como tal é de uma atualidade perene” (p. 86) [95].

42. Poder-se-iam abordar muitos outros autores, do passado e do presente, que dão continuidade a esta tradição brasileira de tradicionalistas em Política — que me parece cada vez mais deletéria; mas fiquemos por aqui, e com a certeza de que ela permanece vigorosa entre nós.


§X
Um quasi excursus sobre Charles Maurras [↵]


43. Para alguns direitistas franceses ou afrancesados, criticar Charles Maurras é erro mais grave do que criticar um papa, como disse Orlando Fedeli; e não é à toa que os nossos católicos maurrasianos atuais frequentemente acusam Leão XIII e Pio XI de liberais, mas eles mesmos não percebem que, assim procedendo, agem como ideólogos. Ora, quem é Maurras, e que autoridade doutrinal é esta de que goza? Este “quasi excursus” sobre ele, sobre o chefe da Action Française, se justifica pela dupla razão de, por um lado, Charles Maurras estar vinculado ao tradicionalismo (como já vimos), e, por outro, de muitos católicos tradicionais ainda aderirem de algum modo ao pensamento de Maurras.

Maurras tem sido comparado, em Política, aos grandes filósofos gregos; para o Pe. Meinvielle, Maurras é um mestre só comparável a Aristóteles. Um absurdo descomunal: Charles Maurras, ainda que não tenha sido uma nulidade intelectual, é minúsculo perto de Aristóteles. (E de qualquer maneira a Política cristã deve muito mais a Platão do que a Aristóteles.) Este gênero de destemperos foi muito bem confutado por Carlos Nougué [96]. Resumo aqui sua posição. Em certa consonância com aquele “extrinsecismo” dos tradicionalistas, Maurras jamais defendeu a Igreja em ordem à salvação das almas, até porque ele era agnóstico e materialista. (Não é ocioso ressaltar a obviedade de que seu pensamento não pode ser examinado à luz de sua conversão no leito de morte.) Se defendia a Igreja, fazia-o por ver nela não mais que um componente civilizador ordenado a um fim político concebido, por assim dizer, rasteiramente. O que Aristóteles, por sua vez, atribuía à pólis já era, de certo modo, religioso (na medida em que tal era possível a um pagão), visto que para o Filósofo a pólis se ordena à vida contemplativa, ou seja, ao conhecimento de Deus e à imitação da vida divina. Nada mais difícil de alcançar para um agnóstico como Maurras; e neste sentido até os tradicionalistas lhe são superiores, porque, ainda que não atinassem para a doutrina da Realeza Social de Cristo (que o Cardeal Pie, diga-se de passagem, já defendia no século XIX), ainda que não atinassem para ela, admitiam a seu modo um fim sobrenatural para a Igreja. Considerando, porém, apenas o ângulo natural, não seria boa a Política de Maurras? Tampouco. Em primeiro lugar porque do ângulo natural Deus continua existindo, mas não há Deus na pólis maurrasiana. Em segundo porque não se dividem assim, em “natural” e “sobrenatural”, os fins políticos, e fazê-lo já é incorrer em algum liberalismo. Ora, o fim último da pólis não é outro que o da Igreja: Deus mesmo e a salvação das almas. A doutrina de Maurras, portanto, não pode ser assimilada pelos católicos; se Pio XI falhou quanto à condenação da Action Française, não foi pelo ângulo doutrinal, pois nisto o Papa da Ação Católica tinha toda a razão; se falhou, foi no sentido de que talvez aquele não tivesse sido o melhor momento para condená-la, porém a condenação haveria de vir. São Pio X, aliás, nunca aprovou a Action Française, apenas postergou-lhe a condenação. É preciso perceber, todavia, que o maior erro não foi o do papa (se é que ele errou): o maior erro foi dos católicos que se juntavam a Maurras. Não era permitido apoiar o mal que era a Action Française, ainda que fosse um mal menor; era permitido no máximo tolerá-lo, nunca misturar-se com ele, pois a Action Française constituía um perigo para a fé e para a moral católica, e, como se não bastasse, sua doutrina era filosoficamente grosseira. Se Maurras falou mal do liberalismo, muito bem, mas falar mal é a parte mais fácil. Até quando o santo padre ia assistir àquela imprudência dos católicos franceses sem nada fazer? Se os católicos não tivessem se reunido em torno de um niilista e se misturado tão profundamente ao mal que era a Action Française, teria tido a condenação as consequências que teve?… E — ai! — os católicos continuam a cometer exatamente os mesmos erros hoje.

Nossos maurrasianos atuais, como dito, acusam Leão XIII e Pio XI de liberalismo; Leão XIII por causa do chamado “ralliément”, Pio XI por causa da Ação Católica. Ora, tais acusações não têm fundamento, porque, como disse o Pe. Nitoglia,

Se se estudam […] os documentos magisteriais acima mencionados dos quatro pontífices romanos [Pio IX, Leão XIII, Pio X, Pio XI], encontra-se uma substancial identidade de doutrina e uma diversidade acidental de aplicações práticas dos mesmos princípios filosófico-teológicos acerca da questão social, dada a diferença de circunstâncias cronológicas (1872-1939) e geográficas (França e Itália), tendo os três papas reinado em um período de tempo que cobre cerca de 70 anos.
[…]
Pio X observa, depois, que é bem estranho e audaz da parte de leigos católicos pôr-se em concorrência com o sumo pontífice (Leão XIII), adotando um ensinamento social diverso daquele de Leão XIII, por ele tão venerado e citado quanto insultado em certos ambientes que representam a face especularmente oposta do sillonismo (porque ao “pecado de democracia”, como única forma de governo, opõe-se o “pecado de monarquia”).
[…]
Por fim, deve-se notar que o Syllabus promulgado por Pio IX em 1864 foi uma ideia (desde 1849) do então Cardeal Gioacchino Pecci, futuro Leão XIII; a Ação Católica tanto criticada em Pio XI por maurrasianos foi uma ideia específica de Pio IX; que o ensinamento político sobre as três formas de governo é idêntico em todos os papas e especialmente em Pio IX, [São Pio] X, Leão XIII e Pio XI; que a doutrina sobre a possibilidade de votar em um parlamento republicano foi aprovada na Itália por Pio X; que a condenação da Action Française já estava assinada, ainda que adiada quanto à publicação, por Pio X [97].

E conclui o nosso Padre:

Não se chega a perceber, portanto, quais são as diferenças de doutrina entre os quatro pontífices, quais os erros teoréticos de Leão XIII e Pio XI. Parece-me que quem combate “desde a direita” a doutrina de Leão XIII e de Pio XI, fá-lo por motivos acidentalmente diversos (monarquia e não democracia como valor absoluto) mas substancialmente iguais àqueles que “desde a esquerda” rejeitam a doutrina de Pio IX e Pio X (a Igreja não teria poder sobre questões de poder temporal, de moral social ou política) [98].

Ademais, acerca do ralliément, diga-se — ainda com o Pe. Nitoglia — que não funcionou na França precisamente porque os franceses não aceitaram os conselhos do papa; se fossem, porém, essencialmente maus esses conselhos, não teriam frutificado no Portugal de Salazar: “A forma de governo”, disse Salazar, “é secundária. O que conta são os homens” [99].

Finalmente, acrescento estas palavras — dignas de séria meditação — que Jackson escreveu sobre o assunto: “O que tem sido publicado pela ‘Action’ com relação à atitude da Igreja é de desiludir para sempre os homens de boa fé sobre essas perigosas alianças da verdade com erros, sejam eles quais forem, vistam eles a mais bela roupagem, se mascarem do modo mais atraente” [100].


Artigo II
Considerações finais: a herança doutrinal do tradicionalismo nos séculos XX e XXI
Parágrafo único [↵]


44. Concluamos a exposição sobre o tradicionalismo revelacionista ao modo de recapitulação. Vimos que os tradicionalistas todos exageram a fraqueza da razão, e contudo diz-nos Santo Tomás que diminuir a perfeição das criaturas é diminuir a perfeição da virtude divina [101]; serão os tradicionalistas, em primeiro lugar, cépticos. Depois, não podendo a inteligência humana, sem o auxílio da tradição, elevar-se ao conhecimento natural das coisas suprassensíveis (Deus inclusive), também o tradicionalismo pode ser considerado como uma forma de agnosticismo. Há, de um lado, uma continuidade em relação ao luteranismo, que exagera os efeitos do pecado original sobre a natureza humana, e do outro lado podemos verificar certa linha de continuidade entre os tradicionalistas e os jansenistas, no sentido de que, de algum modo, as ordens natural e sobrenatural se confundem tanto para os primeiros quanto para os segundos; mas estavam, é verdade, demasiado presentes no espírito dos tradicionalistas os horrores da Revolução Francesa para terem um juízo equilibrado sobre a razão, se se considera que, ademais disso, não conheciam boa Filosofia. Observe-se que o tradicionalismo foi erguido sobre os fundamentos da Filosofia moderna, e, como disse um autor, se alguém se extraviou, jamais alcançará a meta se não voltar àquela parte do caminho onde começou a desviar-se; por isso, vãos seriam os esforços daquele que, espantado com as conclusões a que conduz o pensamento moderno, intentasse construir um novo edifício filosófico sem abandonar os fundamentos deste mesmo pensamento moderno. Em geral, não se pode querer fazer com os modernos o que Santo Tomás fez com os antigos, porque, como disse Liberatore, se de um lado o germe está em vias de se tornar vivente, do outro não se pode tornar em vivente um cadáver.

De suma importância será também a doutrina da Revelação primitiva, necessariamente conexa à Gnosiologia tradicionalista. Vimos que é uma questão teologicamente complexa, e que seria impossível de resolver neste espaço; mas, colocadas as coisas em seu devido lugar, a doutrina da Revelação primeva pode e deve ser entendida corretamente. Os tradicionalistas, no entanto, exagerando a debilidade da inteligência humana e sua dependência em relação ao ensinamento exterior (tradicional), haveriam de entender mal esta doutrina, e ver tradição onde não havia senão distorções; e o fizeram, influenciados algumas vezes por autores mais do que suspeitos, como Saint-Martin. Estas influências se explicam quando temos em mente que o contexto, digamos, cultural em que a atividade intelectual tradicionalista começou a se desenvolver era o contexto do romantismo. O romantismo poderia ter sido ignorado, poderia ter sido rejeitado, e poderia também ter sido assimilado. E de assimilação foi, em algum grau, a postura que os tradicionalistas adotaram em relação a ele, donde certa tendência a um misticismo estranho em alguns dos autores de que tratámos. Misticismo estranho e perigoso que subsiste ainda nos meios católicos tradicionais de nossos dias, como Alistair McFadden mostrou em suas Observations on the influence of the occult in traditional catholic discourse. Se, porém, todo romantismo implica de algum modo uma gnose — a qual por sua vez se pode definir como uma sorte de culto a um conhecimento (ou reconhecimento) salvífico e divinizante —, não haverá neste mundo doutrina mais avessa ao romantismo que o tradicionalismo? É preciso notar, quanto a isto, que o conhecimento superior que cultuam os gnósticos românticos não é um conhecimento meramente racional; grosso modo, este é por eles repelido: assim como os tradicionalistas, os românticos são “anti-iluministas”, quer dizer, avessos ao “falso iluminismo” racionalista: “O Iluminismo verdadeiro”, diz-nos Fedeli, “seria, pois, segundo Kirchberger, o religioso, aquele que reconhece que a verdadeira luz que ilumina e guia o homem vem de Deus e não da razão” [102]. Como já ficou dito, tradicionalismo e romantismo não se identificam (mesmo porque poderíamos encarar o romantismo por inúmeros ângulos, afinal “romantismo” é uma noção bastante ampla); mas paralelos como estes nos ajudam a ter uma ideia mais completa do fenômeno tradicionalista, se assim posso me exprimir. Certamente a abordagem tradicionalista da tradição deve muito ao esoterismo illuminé: “Esses iluminados”, continua o Prof. Fedeli, “consideravam-se possuidores de uma doutrina recebida ou diretamente de Deus, ou por meio de uma longa tradição imemorial, que se transmitira secretamente através das idades” [103]. Não erraram os tradicionalistas simplesmente ao defender o papel importantíssimo da tradição; se hoje o mundo soubesse valorizá-la — este mundo que é tudo menos tradicional —, nossa situação não seria tão lúgubre. Não; o erro dos tradicionalistas foi ter contraditoriamente querido defender a tradição sustentando-se em pensadores nada menos que antitradicionais, como o é toda a Filosofia moderna. É verdade que não é o simples fato de ser tradicional que torna bom e confiável um autor, ainda que naturalmente este fato não seja de menosprezar-se; mas acontece que são precisamente esses autores — refiro-me aos Doutores da Igreja sobretudo — os que apresentaram as soluções mais perfeitas e admiráveis para os maiores problemas. Logo se vê que é impossível citar em favor dos tradicionalistas aquelas palavras da carta apostólica Notre charge apostolique (1910), de São Pio X, que dizem que os verdadeiros amigos do povo não são revolucionários, nem inovadores, mas tradicionalistas: ora, o tradicionalismo revelacionista, como dito e redito, é uma novidade filosófica do século XIX e se desvia em importantes pontos do ensinamento tradicional da Igreja e de seus Doutores. É óbvio que São Pio X emprega esta palavra, “tradicionalista”, em um contexto bem diverso.

É preciso conceder que nem tudo o que disseram os tradicionalistas é mau — longe de mim insinuá-lo. Mas, infelizmente, como não poderia deixar de ser, uma das poucas coisas realmente boas que tinham os tradicionalistas do século XIX, ou seja, seu ultramontanismo (entenda-se bem o que quero dizer com isto!), é precisamente uma das únicas coisas que seus leitores atuais deixam de lado. Vemos hoje, por exemplo, os americanos com sua perspicácia habitual falar de “hyperpapalism”… Não digo que teologicamente o ultramontanismo dos tradicionalistas fosse de admitir sem reservas: não estamos diante de verdadeiros teólogos. Falo, antes, de certo espírito de submissão à autoridade eclesiástica (legítima!) que eventualmente se poderia haurir de algumas de suas obras (espírito que, no entanto, me parece preferível haurir em outros lugares). Também vimos que, em Política, disseram coisas boas os nossos tradicionalistas… misturadas, nada obstante, a muitos erros e sem jamais atinar para a Realeza Social de Nosso Senhor, herdeiros que são de uma tradição multissecular de naturalismo teológico-político. Note-se igualmente que poderíamos encontrar a origem próxima da Política de alguns tradicionalistas mais antiliberais na crítica burkiana à Revolução Francesa; ora, Burke era um liberal. Mas como quer que seja, é na Política que se encontra a maior isca dos tradicionalistas, e é por aí que quase sempre os incautos foram fisgados. Já vimos que não é boa a Política tradicionalista, e que os erros que carrega em seu seio podem conduzir (e efetivamente conduziram em alguns casos) ao próprio liberalismo. A Política que nasce com os tradicionalistas chama-se “contrarrevolução”. Hoje, a contrarrevolução não é estritamente tradicionalista, mas isto não significa que ela tenha abandonado de todo o pensamento tradicionalista, ademais de não significar que ela, a contrarrevolução, seja tomista. Em verdade, teríamos até dificuldade de dizer o que seja a contrarrevolução, porque ela parece pecar por indefinição; peca também por uma superficialidade esquemática no que diz respeito à História e por um voluntarismo tendente, de certo modo, ao milenarismo. Fisgados pela Política tradicionalista também o foram, em certa medida, alguns neotomistas, e por aí é possível perceber (simplificando um pouco o quadro), de um lado, neotomistas “de direita” (como o Pe. Taparelli), e, do outro, neotomistas “de esquerda” (como o Maritain humanista). Não devemos cair à direita nem à esquerda, mas é verdade que cair para a esquerda é pior: sed quod ad sinistram verget perniciosius est. Assim, os tomistas ditos “de direita” estão mais próximos da verdade do que os “de esquerda”, embora em ambos os lados encontremos o mesmo desvio da correta doutrina católica quanto à ordenação essencial do gládio temporal ao gládio espiritual. É preciso, conceda-se, ter alguma indulgência para com os tomistas “de direita”, pois que, no âmbito da Sacra Teologia pós-Unam sanctam, a correta doutrina só havia sido sustentada por um punhado de teólogos desacreditados, agostinianos em sua maioria, talvez um pouco exagerados, enquanto a tese da ordenação indireta era sustentada pela vasta maioria dos teólogos, e, entre estes, teólogos do peso de um Suárez, apelidado “Doctor Eximius”.

O pensamento dos tradicionalistas não se restringe, como já vimos, à Política e à Gnosiologia, pois que também eles se debruçaram sobre a Educação e sobre as artes; isto nos deu ocasião de ver o tradicionalismo na prática, se me é permitido expressar-me assim. Poderíamos, igualmente, vê-lo na prática se prestássemos atenção à sua maneira de escrever Filosofia, porque alguns deles não chegam a argumentar propriamente; antes, afirmam ou negam. Não se veem ali muitos silogismos, próprios do discurso filosófico, o que se deve em parte ao desprezo que alguns deles tinham pela escolástica, escravos que eram ainda dos tediosos preconceitos modernos em relação a ela. Alguns tradicionalistas, no entanto, tinham verdadeiro talento para a escrita. A bela e vigorosa prosa desses autores pode, é verdade, ser traiçoeira, na medida em que nos faz desviar a atenção dos eventuais erros que ali se possam encontrar. Algo análogo se dá no âmbito das artes do belo. É um grande perigo deixar-se enganar pela beleza dos versos (de conteúdo satânico) de um Milton, de um William Blake, de um Goethe, de um Baudelaire, de um Rimbaud, de um Cruz e Sousa, por exemplo, ou pela beleza da prosa de um Guimarães Rosa na maior parte de suas obras; mas para os católicos parece especialmente difícil percebê-lo. Para citar o caso bastante conhecido de Machado de Assis, suas obras mais acabadas artisticamente têm mau conteúdo, e não poderiam deixar de tê-lo, porque, como disse Daniel Scherer, a cosmovisão do Bruxo do Cosme Velho era schopenhaueriana; contudo, alguns católicos dizem que era católica a cosmovisão dele. Ora, ainda que estes católicos me pareçam estar equivocados, o fato é que cosmovisão católica até o Diabo a tem: e no entanto duvido muito que tenha escrito bons romances. Obras de arte belas em sua forma e más em seu conteúdo são sempre perigosas; a profunda analogia do ouropel, feita por Carlos Nougué em seu já citado Da arte do belo, é frequentemente mal compreendida. Evitar as más obras de arte não é um escrúpulo, como querem fazer crer alguns. (Em verdade, hodiernamente quase tudo é tratado como escrúpulo, de modo que em certos meios há um verdadeiro escrúpulo com escrúpulos.) Que continuem, pois, na corda bamba, e verão que não é possível ficar muito tempo ali.

Gracejos e beliscaduras à parte, o assunto que estudámos pode fazer ver também que temos superestimado nossa própria inteligência, pois nos leva a questionar como os católicos da época, muito mais ilustrados e bem intencionados do que nós, não perceberam esses erros. O homem do século XIX devia ter alguma fraqueza que talvez não tenhamos; mas qual será a nossa? Por isso, a negligência para com as más leituras parece ser muito de evitar-se. A Igreja, verdadeira Mãe, sempre teve o maior cuidado neste sentido; donde o Index — ao qual, diga-se de passagem, os fiéis eram obrigados a submeter-se, e gravemente em muitos casos. Sem dúvida, Ela não ignorava a capacidade intelectual dos fiéis de perceber os erros nos maus livros; mas, profunda conhecedora da natureza humana, a Igreja lhe conhece também as fraquezas. E os tradicionalistas são a prova de que — para citar o Pe. Chastel — mesmo as intenções mais generosas, mesmo o espírito mais fino e mais elevado, mesmo o mais incontestável talento de escritor, nada disso nos põe ao abrigo das fraquezas do espírito humano, e — para concluir com as palavras do Pe. Roussel —, nada disso substitui a boa doutrina.

45. Como já ficou dito no proêmio, as boas intenções de Descartes (se é que elas existiam de fato) não impediram que seus erros se aprofundassem e mudassem de aparência na pena de seus discípulos — fiéis ou não a seu pensamento original —, e que sua obra tivesse constituído nada menos que um verdadeiro e muito oprobrioso insulto à dignidade da Filosofia. Podemos, mutatis mutandis, aplicar este mesmo pensamento aos tradicionalistas. Ouçamos estas palavras de Ernest Hello:

O próprio do erro é não ter senão um instante para si; como o próprio da verdade é ter diante de si a eternidade. Assim, uma é paciente, o outro é apressado.
O erro faz duas coisas: ele se apressa, ele se dissolve.
Ele se apressa, e enquanto se agita, crendo apressar sua vida, ele apressa sua morte. Quando consegue acelerar alguma coisa, ele acelera a maturidade do princípio de morte que ele carrega no fundo; quanto mais prosperar, tanto mais se dissolverá.
Se o erro conhecesse melhor seus interesses, permaneceria na penumbra; ele amaria o segredo, pois que, para ele, a única maneira de durar muito é dar um pouco de cada vez; a única chance que tem de perdurar está em não mostrar sua face. Ele não poderia se fazer suportar e não poderia ele mesmo suportar os olhares que se lançam sobre ele senão sob a condição de ocultar seu rosto. Se se descobre, ninguém suportaria estar diante de sua feiúra, e esta feiúra se envergonharia diante de si mesma se ela se percebesse.
Mas, por uma vingança da verdade, o erro que, por piedade, por interesse, por pudor, deveria esconder-se, possui, ao contrário, o ardor imprudente de se mostrar, e quando se mostra, ei-lo perdido. Perdido sob esta forma, ele procura uma outra, guarda-a até ao dia em que, posto à luz, é reconhecido sob esta nova face, e recomeça assim esta comédia, em que é ao mesmo tempo o ludibriado e o vigarista [104].

46. Poder-se-ia dizer que os erros dos tradicionalistas encontraram uma “nova face” no século XX: o tradicionalismo perenialista. (Não é procedimento malicioso de minha parte empregar “tradicionalismo” para referir-me a esta escola, porque quem reivindica tal nome são os próprios perenialistas.) Lembremo-nos de que, ao tratar da Revelação primitiva, as pistas que seguimos nos levaram até à Renascença. Talvez pudessem, é verdade, ter-nos conduzido a Escoto Erígena (815 – 877), por exemplo, e mesmo a alguns neoplatônicos antigos, como Proclo (412 – 485); o fato, porém, é que é exatamente nestas fontes que muitos perenialistas buscam inspiração — além, é claro, das religiões orientais. Mas arrisco-me a dizer que, sem o tradicionalismo revelacionista, o perenialismo dificilmente teria sido possível, afinal quem em Filosofia salvou, por assim dizer, a “tradição” nos séculos XVIII e XIX foram De Maistre, De Bonald, Lamennais… Teria esta insistência na “tradição” sobrevivido ao racionalismo, ao ecletismo, etc., se não tivesse havido tradicionalismo? Será que os philosophes inconnus ligados a sociedades secretas e a círculos esotéricos teriam trazido à tona com tanto êxito a ideia de uma “Revelação primitiva” e de uma “Tradição Universal” que se opusesse aos erros do “falso iluminismo”, da “Revolução”, enfim, da “crise do mundo moderno”? Teria sobrevivido ao século XIX a busca de resquícios da “Revelação primeva” nas religiões antigas se não fossem a vasta erudição do Essai de Lamennais e os Annales de Bonnetty, por exemplo? Já sabemos que em parte os tradicionalistas revelacionistas aprenderam essas ideias com os illuminés; mas quem deu a elas a força e a coesão de uma relevante escola filosófica (e teológica em alguma medida), quem escreveu a respeito livros que fizeram imenso sucesso, quem fundou revistas de grande circulação dedicadas a essas ideias, não foram os teósofos. Não é de se menosprezar, ademais, o fato de que não poucos satanistas do século XIX — como os já citados Baudelaire e Eliphas Lévi — se apropriaram de ideias tradicionalistas (principalmente de Joseph de Maistre).

Vejamos o que seja o tradicionalismo perenialista. Como disse o Pe. Calderón, “o pensamento do modernismo, como o do gnosticismo de todos os tempos, é simples e pobre, mas presume-se profundo graças à bruma de confusão que o envolve” [105]. Esta bruma de confusão, todavia — e a natureza deste opúsculo que ora concluo —, não permitirão que nos detenhamos demasiado sobre o perenialismo e sobre suas diversas manifestações nos perenialistas (Guénon, Schuon, Borella, Coomaraswamy, Olavo de Carvalho, Dugin, Bannon, Wolfgang Smith, et caterva). Trata-se grosso modo de uma doutrina segundo a qual as “grandes tradições religiosas da humanidade” (Cristianismo, judaísmo, islamismo, budismo, hinduísmo, etc.) possuem todas um elemento comum, uma unidade transcendente (também chamada “philosophia perennis”) que remonta a uma tradição primordial adâmica; no entanto, é evidente que as religiões possuem também diferenças de rito e de doutrina. Esses dois elementos, ou seja, as diferenças entre cada uma delas e a unidade transcendente de que gozam, se articulam através de uma distinção já conhecida nossa: a distinção entre “esotérico” (oculto) e “exotérico” (público) — é o “princípio da dupla doutrina” sobre o qual De Maistre falava (cf. nota 25). O aspecto esotérico seria o suposto elemento comum das religiões, a tradição perene, reservada a um pequeno grupo de metafísicos iluminados [106]; ao aspecto exotérico, por sua vez, corresponderiam as particularidades de cada religião, e a maior parte dos crentes de cada uma delas estaria limitada a conhecer apenas este último aspecto, que é exterior e secundário. Ora, se no fundo as “grandes religiões” não são senão expressões diversas de uma mesma tradição adâmica, é preciso admitir com os perenialistas o absurdo de que todas são queridas por Deus e que em todas se pode obter a salvação. Será necessário chamar a atenção para as semelhanças entre isto e o que já se disse sobre o tradicionalismo revelacionista? Nada impede que alguém, lendo em clave esotérica obras tradicionalistas, lhes atribua algum perenialismo. Podemos pois considerar que, de certo modo, o perenialismo é uma sublimação do tradicionalismo. É precisamente o que disse o Pe. Nitoglia:

É curioso notar como um notável estudioso e ancião adepto do guénonismo, Jacques-Albert Cuttat, define o guénonismo como um “neotradicionalismo”. Parece que Guénon retomou e sublimou, à luz da filosofia oriental, as três teses fundamentais do Tradicionalismo oitocentista francês (especialmente aquele de J. de Maistre, de L. de Bonald e de F. Lamennais), isto é: 1º) o antirracionalismo; 2º) a unanimidade da Tradição primordial, expressa pela linguagem, como único critério de verdade e sobretudo 3º) o primado espiritual do Oriente [107].

Abram-se parênteses para dizer que, se se considera o fato de que o perenialismo de Guénon e caterva estava, antes dos neoplatônicos renascentistas, já “em germe” nos últimos neoplatônicos antigos (como no citado Proclo, ou em Jâmblico, et alii) — conquanto estes tenham muito de aproveitável —, então o “paleoaristotelismo” de Santo Tomás parece brilhar como algo realmente providencial, uma intervenção de Deus na história do pensamento humano, porque foi indo diretamente a Aristóteles que Santo Tomás pôde salvar a Filosofia e a Teologia do neoplatonismo e do (neoplatônico) aristotelismo árabe — além de, como se não bastasse, corrigir o Estagirita e também Platão. Talvez sirva de lição para quem tende a preferir os comentadores de Santo Tomás em detrimento do próprio Santo Tomás.

47. Outro importante assunto sobre o qual falámos algumas vezes aqui é o milenarismo. Aprofundemo-lo um pouco mais. Há muitas formas de milenarismo, mas é preciso notar que pode ser classificada como “milenarista” toda aquela doutrina que: ou julga que o paraíso será na terra, ou julga que, mesmo sendo o paraíso fora, também haverá um paraíso na terra antes do paraíso sobrenatural. Surgiu o milenarismo, sob uma forma grosseira e carnal, no séc. I com o gnóstico Cerinto, e também foi defendido por Apolinário de Laodiceia no século IV. Segundo os defensores desta forma de milenarismo (que sempre foi combatida como herética), Nosso Senhor retornaria visivelmente antes da Parusia para reinar durante mil anos (cf. Ap XX) com os eleitos ressurrectos, em um reino de deleites corporais. Entre os séculos II e III, alguns Padres, influenciados por Papias (bispo e discípulo de São João), passaram a defender uma forma mitigada de milenarismo, segundo a qual os deleites seriam espirituais, e não corporais; Santo Agostinho, no entanto, entre os séculos IV e V, criticou-a severamente, e sua grande autoridade fez com que ele, o milenarismo, caísse no esquecimento. Foi retomado na Idade Média, com algumas modificações, pelo monge cisterciense Joaquim de Fiore e por alguns franciscanos espirituais, mas o joaquimismo logo foi condenado. Depois da condenação do milenarismo joaquimita, esta doutrina voltará a ser defendida somente no século XVIII por Manuel Lacunza S.J. no livro Venida del Mesías en gloria y majestad (1790) — devidamente adicionado ao Index em 1824. O milenarismo lacunziano (que é basicamente o milenarismo mitigado de Papias) conquistou todo o mundo hispânico, e aí subsiste até hoje graças principalmente aos aperfeiçoamentos dados a ele pelo Pe. Castellani. Esta forma mitigada de milenarismo foi interditada pela Igreja [108]. Também milenarista é a doutrina do “Reino de Maria”, formulada por Plinio Corrêa de Oliveira, e parece-me que este milenarismo é o que tem constituído maior perigo para os católicos brasileiros, devido à influência que em nossas terras têm os teoconservadores plinianos (mas é verdade que esta influência não se restringe de modo algum ao Brasil); dar-lhe-emos, pois, alguma atenção. Esta doutrina do Dr. Plinio consiste em que, antes da vinda do Anticristo, “haverá um período de felicidade e de santidade como até hoje o mundo nunca teve”, “o último auge possível do bem antes dos tempos que precederão o fim do mundo”; em outras palavras, o mundo se recristianizará de modo inaudito, e Nossa Senhora e Nosso Senhor, nesse período, reinarão espiritualmente “sobre as almas, sobre a sociedade inteira”. Ora, algumas considerações devemos ter em mente:
1) Esta forma de milenarismo não foi condenada, mas foi duramente criticada por São Pio X na encíclica Communium rerum (1909), de modo que sustentá-la seria, no mínimo, temerário; encerra pelo menos um inconveniente e dois riscos:
1.1) É inconveniente por contradizer as Escrituras, porque, com efeito, os sinais anunciados por Nosso Senhor que indicariam o fim dos tempos hão de acontecer apenas uma vez. Ora, quem duvidaria que a apostasia geral das nações já se tenha dado? (Em verdade, parece mesmo que todos o sinais já se deram.) Se de fato fosse ocorrer uma recristianização do mundo, haveria de haver novamente a apostasia geral das nações.
1.1.1) Diga-se de passagem que, quanto a estender muito o tempo que se seguirá à morte do Anticristo, há o inconveniente de ser provável que esse tempo seja bastante curto. Segundo São Vicente Ferrer, por exemplo, não durará mais do que 45 dias.
1.2) É perigosa por se tratar de uma sorte de esperança carnal, um tipo de mundanização da virtude teologal da esperança, virtude esta que não foi dada para suspirar por um reino temporal mas pela Jerusalém celeste. Suspirar por paraísos terrestres é mais próprio das ideologias (muito a propósito chamadas “religiões políticas” por Eric Voegelin).
1.3) É perigosa por dar munição ao Anticristo, porque, convenhamos, estando o Anticristo talvez batendo às portas, não será, porventura, fácil de ser por ele enganado alguém que, muito por exemplo, fosse apanhado esperando por um milênio de paz, ou pelo “Grande Monarca” [109] e coisas que tais?

O milenarismo do Dr. Plinio parece pretender-se fundado sobretudo nas aparições de Nossa Senhora em Fátima e no Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort. Em verdade, funda-se principalmente no milenarismo do Conde de Maistre (ele de novo!), de Mons. Delassus e do Pe. Ramière, e nas “visões” de Emmerick [110]. Estas fontes o levam a fazer uma interpretação enviesada, extraindo “more hermetico” sua própria doutrina das palavras de Nossa Senhora em Fátima, do Tratado de São Luís de Montfort, da Quas primas (!), e de escritos de vários santos e religiosos. Este procedimento ainda é adotado pelos plinianos — como se pôde observar claramente na polêmica entre Carlos Nougué e o pliniano Roberto de Mattei [111].

Lamentavelmente, a doutrina do “Reino de Maria” não está limitada ao círculo dos plinianos e dos tefepistas. Antes estivesse… Os católicos tradicionais também a defendem, pensando que estão defendendo simplesmente o Reino da Santíssima Virgem do qual fala São Luís Maria Grignion de Montfort. Defendem, pelo contrário, a doutrina do Dr. Plinio expurgada dos elementos burlescos da gnose pliniana; mas, assim como os plinianos, esses católicos parecem fazer daquele admirável Tratado uma leitura enviesada — talvez no fundo devedora das mesmas fontes (De Maistre, Delassus, Emmerick…) —, leitura que trai o verdadeiro pensamento do nosso Santo de Montfort. Dizem esses católicos, em defesa da doutrina do “Reino de Maria”, que o Tratado foi recomendado pelos papas, etc. Ao que se deve responder: Quid inde? Jamais ninguém disse que o problema é o Tratado, e muito menos que ele é milenarista. O que se diz é que a leitura que alguns fazem desse tratado é milenarista. Mas — segue a objeção — dizem esses católicos que desacreditar a doutrina do “Reino de Maria” é desacreditar o poder que Nossa Senhora possui de vencer a crise atual da Igreja. Ora — respondo —, crer que Nossa Senhora triunfará sobre esta crise é coisa completamente diversa de ter a certeza que haverá uma recristianização do mundo. Além disso, no mesmo sentido em que se argumentou mais acima, se a crise atual da Igreja é, de fato, a abominação da desolação, seria razoável alimentar a certeza de uma recristianização? Haveria, depois da recristianização, uma nova abominação da desolação? Não digo que não devemos desejar que o mundo seja cristão, ainda que pareça impossível que ele venha a sê-lo: contra spem in spem; mas também é preciso ter o cuidado de não depositar esperanças em uma recristianização do mundo de maneira a fazer assemelhar-se nossa Religião à religião imanentista dos ideólogos. A ideologia parece constituir um perigo de que os católicos tradicionais ainda não se deram conta. Como disse certa vez Nougué, a Cristandade surgiu no Império Romano quando os cristãos menos pensavam nisso: o que faziam era sofrer o martírio, e foi o sangue destes mártires que cristianizou aquele império pagão. De todo modo, mesmo que o mundo nunca se torne cristão, é preciso sempre sustentar a reta doutrina, e isto implica necessariamente um retorno às fontes puríssimas do pensamento católico e, consequentemente, uma rejeição categórica de tudo o que não esteja em conformidade com ele. Ora, qual é o verdadeiro fundamento da doutrina do “Reino de Maria”?

48. Por fim, e talvez exigindo demais daqueles que tiveram a paciência de me acompanhar neste passeio filosófico-teológico de 300 anos, eu gostaria de fazer uma citação do Prof. Nougué, extensa mas muitíssimo a propósito. De algum modo é a inspiração deste trabalho que ora se termina:

[Em] verdade, tudo quanto se disse aqui não faz senão mostrar que uma parcela do tradicionalismo católico se vai corroendo em seus fundamentos por graves debilidades doutrinais, ou seja, filosóficas e teológicas. É como se tal parcela dos tradicionalistas atuais ainda vivesse na década de 1950-1960, quando o “tradicionalismo” tomista e o da Cúria foram incapazes, apesar de seus esforços, de impedir que o Reno desaguasse no Tibre; eram, para usar expressão alheia, “muros com brechas”. Ou mais ainda: é como se esta parte do tradicionalismo católico ainda pensasse em termos de consagração da Rússia pedida por Nossa Senhora em Fátima e, pois, de um anticomunismo caduco e anacrônico. Com efeito, como mostro em “Fátima e a Rússia de Putin, ou quando se faz imperioso um ‘parece’”, a promessa de Nossa Senhora era condicional: “Se…, então…”, ou seja, como não se consagrou a URSS a seu Imaculado Coração, o império comunista espalhou seus erros pelo mundo (e até no mesmo Concílio Vaticano II); e hoje é o mesmo mundo ocidental, sob o tacão cor-de-rosa da revolução sadolibertina, o que busca espalhar seus erros numa Rússia neotzarista. Com isso, ou seja, se permanecer nesse passadismo que não se quer renovar e que para tal se cega à realidade atual, tornando-se incapaz de aderir na prática à doutrina do reinado social de Cristo e de compreender que o Apocalipse de São João, ao que parece, nos revela o que estamos vivendo — o milênio é duplo, como o mostrarei em meu Comentário a esta Profecia, e parece que ambos já se cumpriram —, se assim permanecer, digo, esta parcela do tradicionalismo católico acabará por não distinguir-se de um dos chifres da Besta da terra, o humanismo, com o que se mostrará inabilitada para cumprir seu papel precípuo: conduzir sua pequena grei a imitar a Cristo nos derradeiros combates da história [112].

[1] O Pe. Calderón e Carlos Nougué já trataram suficientemente do tradicionalismo crítico. Sobre o assunto, cf. Álvaro Calderón FSSPX, A candeia debaixo do alqueire, 2. ed., São Paulo, Castela Editorial, 2020, p. 156-159 e vários outros lugares, sobretudo o apêndice sexto; Carlos Nougué, Do papa herético e outros opúsculos, 2. ed., Formosa, Edições Santo Tomás, 2019, p. 233-311; Carlos Nougué, No fragor da batalha, Formosa, Edições Santo Tomás, 2023, pp. 81-121 e 183-190.
O que por ora faço é apenas chamar a atenção para a questão do nome “tradicionalismo”. [↵]

[2] Note-se que o que interessa neste opúsculo não são as intenções dos autores tradicionalistas, mas sua doutrina. Se, por exemplo, o fato de De Maistre ter sido membro da Maçonaria for mencionado, não o farei para julgar a pessoa do Saboiano, mas para alumiar pontos doutrinais. [↵]

[3] Lúcio José dos Santos, O tomismo e as várias correntes neotomistas em A Ordem 23, 1940, p. 36-37. Importa dizer que o clima intelectual da primeira metade do século XIX era absolutamente caótico; com clareza no-lo mostra a Babel de Ernest Hello (1828 – 1885) — escritor agradável, aliás, mas também vinculado ao tradicionalismo e, como todos os tradicionalistas, exagerado quanto a tudo e tendente a um “misticismo” algo suspeito. Quanto aos católicos, também estavam profundamente desnorteados. Parece difícil, portanto, sem algum anacronismo, exigir demais que os católicos da época fossem tomistas. Com efeito, a encíclica Aeterni Patris, responsável por ter tirado do esquecimento a obra do Aquinate, só viria a lume em 1879, e a aprovação das 24 teses só ocorreria em 1914. Enquanto tudo isso não acontecia, o tomismo, ainda que não tenha deixado de ser cultivado aqui e ali, certamente não era muito conhecido entre os católicos. O tradicionalista Bonnetty (1798 – 1879), por exemplo, chegou a dizer a absurdidade de que o método de que se serviam Santo Tomás, São Boaventura e os escolásticos conduzia ao racionalismo, ao naturalismo e ao panteísmo (pelo que foi censurado pela Sagrada Congregação do Index em decreto de 1855). [↵]

[4] Paulo Miranda e Orlando Fedeli, Mestre de fábulas, disponível em https://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/mestre/, s/d. [↵]

[5] Muito proficuamente examinado por Daniel Scherer em A raiz antitomista da modernidade filosófica, e — ainda que por outro ângulo — por Orlando Fedeli e por Laura da Palma em Antropoteísmo: A religião do homem[↵]

[6] Pierre Chevallier, Histoire de la Franc-maçonnerie française, vol. 3, Paris, Fayard, 1974, p. 411 apud Louis Molet, La Franc-maçonnerie française em Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses 3, 1976, p. 414. [↵]

[7] George M. Sauvage C.S.C., Traditionalism em The catholic encyclopedia, vol. 15, New York, The Encyclopedia Press, 1913, p. 14. [↵]

[8] Mesquita Pimentel, O liberalismo, ontem e hoje, Petrópolis, Vozes, 1951, p. 27. [↵]

[9] Cf., por exemplo, Frederick C. Copleston S.J., Medieval philosophy, London, Methuen, 1952, p. 154-157. [↵]

[10] Émile Bréhier, Histoire de la philosophie allemande, Paris, Payot, 1921, p. 8. [↵]

[11] Cf. Denzinger, n. 501-529. [↵]

[12] Esta doutrina de Eckhart foi condenada na seguinte proposição: “Algo há na alma que é incriado e incriável; se toda alma fosse tal, seria incriada e incriável, e isto é o intelecto [intellectus]” (Denzinger, n. 527). A propósito, não confundir com a scintilla (ou seja, “centelha”) tomista, que serve como metáfora para uma das acepções da sindérese. Cf. De verit., q. 17, a. 2, ad 3. [↵]

[13] Mestre Eckhart, The complete mystical works, ed. e trad. Maurice O’C. Walshe, New York, Crossroad Publishing, 2009, p. 109. [↵]

[14] Entre os católicos leitores e entusiastas de Emmerick no século XIX, mencionem-se sobretudo: D. Prosper Guéranger O.S.B. (1805 – 1875) — que também era admirador das “visões” de Maria de Ágreda (cf. Le Monde 60, 1860, p. 3) —, e Mons. Henri Delassus (1836 – 1921), que simplesmente chegou a dedicar páginas e páginas às “profecias” de Emmerick (cf., por exemplo, La conjuration antichrétienne, vol. 3, Lille, Desclée, 1910, p. 891-900). Ambos os autores são tidos em altíssima conta pelo catolicismo tradicional, o qual também acrescentou recentemente Maria Valtorta à lista de suas falsas videntes preferidas, mas tanto esta quanto Maria de Ágreda estão — oh! — no Index
Acerca do que estas falsas visões “revelam” sobre a Paixão de Nosso Senhor (porque é normalmente por aí que elas fisgam os desavisados), cabem as palavras muito justas do Pe. Luis de la Palma S.J. em sua História da Sagrada Paixão (trad. Cristina Hulshof, São Paulo, Cultor de Livros, 2016, p. 21): “De que adianta exagerar, aumentar e inventar coisas que não aconteceram na Paixão do Senhor, somente para derramar lágrimas e causar compaixão, como se o que de fato aconteceu e o que os evangelistas contaram já não desse motivos de sobra para chorar e compadecer-se?”
Aliás, não é à toa que entre os católicos tradicionais haja certo apego à mediocridade artística — repleta de erros grosseiros de ordem histórica, médica e bíblica — de Mel Gibson, A paixão de Cristo (2004), que foi quase completamente baseada nas “visões” de Ágreda e de Emmerick — e discrepa das revelações feitas a Santa Brígida, obviamente muito mais fiáveis. Observe-se que, se o filme fosse artisticamente conseguido, quanto aos fins e quanto aos meios, tais erros de ordem histórica, médica, etc., não o reduziriam a mau filme ­— ainda que estes erros se agravem pela elevação do assunto —; mas não é o caso, pois o filme em questão não é artisticamente conseguido. Também não por acaso, ele serve perfeitamente à espiritualidade da devotio moderna: lúgubre, sangrento e sentimentalista. E como não poderia deixar de ser, típica produção (new)hollywoodiana que é, já tem sequência anunciada. Posso dizer contudo, para não eludir o que tem de produtivo a questão — baseando-me na opinião de alguns estudiosos —, que pouquíssimas películas acerca da Paixão podem de algum modo ser consideradas valiosas: Gólgota (1935), de Julien Duvivier, por exemplo. Infelizmente Duvivier se deixou influenciar pelos muitos erros difundidos pelo tal Pierre Barbet, apesar de no resto ser bastante fiel ao Evangelho de São Mateus. Também se pode mencionar Rei dos reis (1927), de Cecil B. DeMille — conquanto seja menos espiritual que a de Duvivier. Que rechaçar, no entanto, há muitas: a sobredita de Gibson, já suficientemente maltratada; a de Nicholas Ray, Rei dos reis (1961), naturalista; a de Pasolini, O Evangelho segundo São Mateus (1964); etc., etc.
Seja como for, para entender a questão de Emmerick — e, em verdade, o romantismo como um todo —, é indispensável o livro de Orlando Fedeli, Elementos esotéricos e cabalísticos nas visões de Anna Katharina Emmerick. O pouco-caso que os católicos tradicionais têm feito do Prof. Fedeli é um tiro no próprio pé. [↵]

[15] É útil mencionar, quanto à história da França oitocentista, a complexa questão do ultramontanismo. Este termo pode ser entendido de diversos modos, segundo a época, o lugar e o ângulo pelo qual é examinado. Muito simplificadamente trata-se, aqui, do posicionamento católico contrário aos diversos territorialismos ou cesarismos (galicanismo, leopoldismo, josefismo, etc.). Neste sentido, o ultramontanismo não deve ser confundido com o tradicionalismo, como alguns autores tendem a fazer. Marin Ferraz, por exemplo, em sua Histoire de la philosophie en France au XIXe siècle, além de misturar de algum modo as duas coisas, vai além e identifica “ultramontano” e “teocrático”. Naturalmente, muitos tradicionalistas eram ultramontanos (De Bonald, no entanto, tendia para o galicanismo), e isso contribuiu para o aprofundamento de não poucas confusões — grosseiras algumas, como a que frequentemente os adversários da Religião fazem entre o Catolicismo e o tradicionalismo. Parece que esse gênero de confusão explica o cuidado com que a Igreja conduziu o caso do tradicionalismo, pouco mais ou menos como ocorrerá, alguns anos mais tarde, em relação à Action Française de Charles Maurras (1868 – 1952): motivos para censuras não faltavam, mas o problema era determinar, em termos de prudência política, o momento mais oportuno (sobre o assunto, cf. Carlos Nougué, Quanto a Charles Maurras quem tem razão? em Estudos tomistas – Opúsculos II, Formosa, Edições Santo Tomás, 2020, p. 285-288). [↵]

[16] Annales de Philosophie Chrétienne 66, 1835, p. 401. A História é muito importante no âmbito da Apologética, principalmente em nossos dias; contudo, que Deus exista, por exemplo, (ou, para falar mais propriamente, que Deus seja) prova-se por argumentação filosófica, e não pela análise de documentos históricos. Sem dúvida, este interesse pela História proporcionou um grande bem a muitas almas, e também à Igreja (no campo da música sacra, por exemplo) e à própria historiografia (medieval sobretudo), mas não se pode dizer que uma Apologética que não valorize devidamente o papel da razão seja irrepreensível. De qualquer modo, é preciso consignar que o sobredito periódico tradicionalista, Annales de Philosophie Chrétienne, padecia defeitos quanto ao cultivo da Disciplina Histórica (cf. Julien Bellamy, La théologie catholique au XIXe siècle, 3. ed., Paris, Beauchesne, 1904, p. 26). Depois da morte (em 1879) de Bonnetty, que fundou a revista em 1830, tentou-se-lhe imprimir a orientação do tomismo que então ia reflorescendo, mas lamentavelmente os Annales acabaram por cair nas mãos dos modernistas. Em 1913, todos os números dos Annales publicados entre 1905 e 1913 (período em que estavam sob a direção de Blondel e de Laberthonnière) foram para o Index, e então os responsáveis decidiram suspender as publicações. Se por um lado a revista terminou como começou, antiescolástica, por outro podemos dizer que terminou perfeitamente incompatível com o que era em seus inícios: pois começou com o sincero desejo de servir devotamente à Igreja, e terminou com uma asquerosa traição à Igreja de Jesus Cristo. [↵]

[17] Pode ser que neste “extrinsecismo” (ou seja, nesta priorização do caráter civilizacional do catolicismo, se assim posso me exprimir) também se encontre, de uma maneira talvez um pouco paradoxal (mas nem tanto), a inspiração de um De Mattei ou de um Ayuso, que, segundo a palavra de Dardo Calderón, não concebem o catolicismo como o Reino de Deus para o mundo, mas como algo restrito a uma “civilização” e, portanto, algo sem vocação universalista, algo aberto à existência de outras “civilizações” e à possibilidade de uma política não católica legítima; em uma palavra, concebem-no como um componente civilizador. Se essa maneira de pensar é de fato tradicionalista em sua origem mais próxima, poder-se-ia dizer que o tradicionalismo foi um erro fecundo.
Desta fonte, a propósito, certamente bebeu Charles Maurras. Quem é o elo que liga Maurras ao tradicionalismo? Ouçamos o que diz Jean-Jacques Chevallier: “Um filósofo profissional, Auguste Comte [1798 – 1857], retoma sob muitos aspectos Maistre e Bonald, laicizando-os, integrando no positivismo certos pontos salientes de sua doutrina política. Curiosa operação que deveria ter grandes consequências sobre o desenvolver do pensamento contrarrevolucionário; deveria, em suma, preparar e permitir um Maurras” (As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, trad. Lydia Cristina, 8. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1998). Sobre Maurras, falarei mais adiante. [↵]

[18] Joseph de Maistre, Oeuvres complètes, vol. 5, Lyon, Vitte et Perrussel, 1884, p. 169-170; o último grifo é meu. [↵]

[19] Frédéric Paulhan, Joseph de Maistre et sa philosophie, Paris, Félix Alcan, 1893, p. 94. Se se trata de uma “unidade” no sentido martinesista do termo, como veremos mais adiante, aí se encontra grande perigo. [↵]

[20] Michaele de Maria S.J., Philosophia peripatetico-scholastica, vol. 2, 4. ed., Romae, Forzani et Socii, 1913, p. 319 (tract. II, p. I, q. 4, a. 6). Há algumas outras obras escolásticas que tratam do tradicionalismo, mas, dentre as que conheço — e que abordam o tradicionalismo por um ângulo mais estritamente tomista —, a de Zigliara O.P., Essai sur les principes du traditionalisme (em Oeuvres philosophiques, vol. 1, trad. A. Murge, Lyon, Vitte et Perrussel, 1880, p. 1-291), merece uma menção especial. [↵]

[21] No post scriptum de uma carta de 1820 (cf. Oeuvres complètes, vol. 14, Lyon, Vitte et Perrussel, 1886, p. 243), o Conde de Maistre recomenda que seu sobrenome — quando não estivesse acompanhado pelo título de conde, pelo prenome ou, imagino eu, por pronome de tratamento —, fosse escrito sem o “de”, por causa das exigências da Gramática e da boa prosa francesas. Por hábito, e talvez um pouco na contramão da literatura especializada, continuo escrevendo “De Maistre” em vez de apenas “Maistre”; mas confesso que não sei qual é a posição de nossos gramáticos quanto a isso.  [↵]

[22] Naturalmente, não se trata daquele iluminismo (também chamado “ilustração” ou “esclarecimento”) que De Maistre quase sempre combateu (hesitava um pouco em sua juventude). O iluminismo a que me refiro é o complexo movimento do iluminismo esotérico, “místico”, dos illuminés — muitas vezes vinculados àquela corrente maçônica “mística”, que já vimos. Joseph de Maistre, que nunca deixou de frequentar os principais autores illuminés, foi ele mesmo maçom illuminé por muitos anos; ali adotava o pseudônimo “Josephus a Floribus”, que, segundo conjeturam alguns, deve-se ao reconhecimento de certo parentesco espiritual com Joaquim de Fiore. A despeito de ter sempre permanecido católico apostólico romano — confessa o próprio Conde em 1816 —, aprendera com os iluminados muitas ideias de que acabou tirando proveito (cf. Amédée de Margerie, Le Comte Joseph de Maistre: Sa vie, ses écrits, ses doctrines, avec des documents inédits, Paris, Librairie de la Société Bibliographique, 1882, p. 431).
Os illuminés são — segundo eles mesmos — os verdadeiros iluministas; reclamam para si esse nome de que os racionalistas maldosamente teriam se apropriado. São três os grandes illuminés dos séculos XVIII e XIX: Martinez de Pasqually (c. 1709 ou c. 1725 – 1774) e seus dois maiores discípulos, Jean-Baptiste Willermoz (1730 – 1824) e Louis-Claude de Saint-Martin (1743 – 1803).
Pasqually é uma figura misteriosa, pouco se sabe a respeito de sua vida. Mesmo seu nome é incerto. Foi criador, em 1765, de uma ordem paramaçônica, a Ordre des Chevaliers Maçons Élus Cöens de l’Univers, em cujas reuniões os graus mais elevados praticavam longos rituais teúrgicos que envolviam invocação de “seres espirituais inteligentes”… Sua doutrina teosófica consiste, grosso modo, em que o homem em seu atual estado de ruptura para com Deus (por causa da queda), poderia, gnosticamente reconciliar-se com este último, e então dar-se-ia a reintegração do homem (e de toda a criação) à sua natureza primitiva divina; a missão dos élus cöens (ou seja, “sacerdotes eleitos”) era promover esta reconciliação. Depois da morte de Pasqually, seus êmulos (como eles mesmos se denominavam), também conhecidos como “martinistas” (embora pareça preferível “martinesistas”, para não confundir com o martinismo de Saint-Martin) se dispersaram. Um deles, Willermoz, maçom proeminente, estabeleceu o Rito Escocês Retificado, mais conhecido em alguns círculos maçônicos como “C.B.C.S.” (Chevaliers Bienfaisants de la Cité Sainte), depois da dissolução da Estrita Observância em decorrência dos Conventos (grandes congressos maçônicos) de Lyon (1778) e de Wilhelmsbad (1782). A finalidade dessa nova ordem era sintetizar todos os ritos maçônicos então conhecidos para veicular a doutrina martinesista da reintegração, que, para Willermoz, era a essência mesma da Maçonaria, ou melhor, era “uma Maçonaria além da Maçonaria”. O outro grande discípulo de Pasqually, Saint-Martin (ou “Filósofo Desconhecido”, seu nom de plume), é mais célebre e talvez mais importante. Sistematizou o pensamento de Pasqually em seu tratado Des erreurs et de la vérité (1775), mas abandonou a Maçonaria e a teurgia (ao menos a teurgia “operativa”) quando descobriu Böehme: encontrou o caminho interior, e o martinismo surge, basicamente, desta conciliação entre Pasqually e Böehme. Humanista teocêntrico segundo alguns (uma contradictio in adjecto também encontrável em alguns tomistas naturalistas), espiritualista sempre crítico do materialismo dos philosophes, o Filósofo Desconhecido era gnóstico, evidentemente, e milenarista; mas a gnose do martinismo não é tão radicalmente “ascética” a ponto de dar as costas ao mundo, por assim dizer, porque, ainda que a suprema unidade seja “ultramundana”, o caminho rumo à reintegração é transformador do mundo, e os acontecimentos históricos, uma vez decodificados, revelam um valor espiritual: neste sentido, a Revolução Francesa foi um evento providencial, uma etapa fundamental na marcha da reintegração, um sacrifício, “um castigo e uma graça ao mesmo tempo”. O Filósofo Desconhecido também se preocupou com o problema da linguagem: sem a linguagem adâmica original (ensinada por Deus, antes da queda), a verdade divina corre o grande risco de deteriorar-se em sua transmissão, porque a linguagem do homem decaído é igualmente decaída, segundo Saint-Martin; ela não é natural como era antes da queda, mas convencional. O Filósofo Desconhecido, apesar do pseudônimo, foi bastante célebre; “seduziu”, diz um autor, “a alta sociedade parisiense”; “viveu”, disse um outro, “sua doutrina filosófica [sic] e mística [sic], não recolhido sobre si mesmo, mas no meio mundano”. É que seu “caminho” era “interior”, prescindia de uma estrutura maçônica, e talvez isso tenha facilitado a difusão de suas ideias. (Naturalmente, “queda”, “providencial” e expressões que tais, aqui têm um sentido completamente diverso do usual e correto.)
Este desleixado rascunho sobre o pensamento desses homens — para cuja feitura me servi de autores que me parecem autorizados — permite entrever o que um estudo aprofundado mostraria com muito maior clareza: Joseph de Maistre, e os tradicionalistas com ele — aliás, frequentadores quase todos do salão e do “confessionário” da Madame Swetchine, uma senhora da nobreza russa convertida ao Catolicismo pelo Conde (cf., por exemplo, Constantin Lecigne, Madame Swetchine, Paris, Lethielleux, 1914, pp. 27-50 e 99-100) —, retomarão a seu modo não poucos temas illuminés. Bréhier chegou mesmo a afirmar que o martinismo encerra o essencial das ideias contrarrevolucionárias de De Maistre e de De Bonald. Em seu indispensável Les sources occultes du romantisme, Viatte chama a atenção para o fato de que a tese da origem sobrenatural da linguagem, tão cara a De Bonald e já presente em De Maistre, naquela época só poderia ter sido tomada dos teósofos. Em 1880, curiosamente, De Maistre foi acusado de plagiar Saint-Martin. Acusação injusta, sem dúvida, fruto talvez de uma leitura superficial; mas não é tão injusta a ponto de ser um completo absurdo, porque a influência que Saint-Martin exerceu sobre o Conde Saboiano é palpável. Agora: como um espírito varonil e profundo como Joseph de Maistre se deixou atrair e até influenciar pelas tolices adamadas de um philosophe inconnu… para mim é um mistério. [↵]

[23] Pierre-Marie Brin P.S.S., Histoire de la philosophie contemporaine, Paris, Berche et Tralin, 1886, p. 276. Quanto aos pontos mais estritamente filosóficos da obra de De Maistre, tento seguir de perto a exposição do Padre. [↵]

[24] Joseph de Maistre, Oeuvres complètes, ed. ne varietur, vol. 6, Lyon, Vitte, 1893, p. 109-110. Quanto a este ponto, também é difícil saber qual é de fato pensamento de De Maistre; sigo a interpretação do Pe. Brin. [↵]

[25] Tenha-se sempre em vista o sentido antes gnosiológico que aqui dou (e que me parece o mais adequado) ao tradicionalismo do século XIX. Verçosa, em sua tese de doutorado, considera improcedentes as acusações de tradicionalismo feitas a De Maistre; não obstante, nota-se em sua tese uma intenção principalmente teológica no breve tratamento que concede ao tradicionalismo, intenção por enquanto alheia a nossas investigações. Para ele, a questão parece girar em torno de certo naturalismo teológico que intérpretes como De Lubac atribuem ao Conde, ou seja, em torno de certa falta de equilíbrio entre as ordens natural e sobrenatural. Aqui, não é exatamente disso que se trata.
De qualquer modo, Joseph de Maistre poderia também ser chamado “tradicionalista” se se considera sua doutrina da Tradição Universal, muito provavelmente inspirada em Saint-Martin, o qual também influenciará (talvez indiretamente) De Bonald, Lamennais e os outros tradicionalistas. Joseph de Maistre jamais chegou a sistematizá-la, nem mesmo em seus registros de leitura, conquanto seja certo que a ela tenha dado grande crédito, e que dela tenha se servido ao longo de toda a sua carreira; o que se pode fazer é conjeturar, reconstruí-la hipoteticamente. Fê-lo de certo modo o Prof. Verçosa, e suas conjeturas me parecem verossímeis (cf. Élcio Verçosa Filho, Paideia divina: Formação e destinação do homem em Joseph de Maistre, tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007, p. 219). Por ora, não pretendo entrar nos pormenores, mas é preciso dizer que esta tese maistriana é bastante suspeita, e sobretudo por causa dela De Maistre pode ser considerado uma sorte de perenialista avant la lettre, por assim dizer. Não sustento que seja formalmente perenialista (note-se que alguns autores perenialistas preferem ser chamados “tradicionalistas”), mas seus escritos, se interpretados esotericamente (e muitos comentadores de sua obra, como Émile Dermenghem e Henri de Lubac S.J., o interpretam nessa clave, e o próprio De Maistre conhecia bem o “princípio da dupla doutrina”), parecem encerrar de alguma maneira não atual muitas teses deste mesmo tradicionalismo perenialista. E com efeito ninguém ignora o fato de que Guénon e — pelo menos até onde sei — todos os outros perenialistas buscam (e encontram) inspiração nas obras de Joseph de Maistre; mas voltarei a eles mais adiante. Alguns intérpretes também veem aí, nesta tese da tradição universal, um dos pontos de convergência entre De Maistre e Baudelaire, a quem, aliás, Tasso da Silveira chegou a chamar “o anti-Rousseau por excelência”. Na verdade, todo o “contramodernismo” (a expressão é de Antoine Compagnon) baudelairiano é, em alguma medida, de inspiração maistriana: “De Maistre e Edgar Poe me ensinaram a raciocinar” (Charles Baudelaire, Oeuvres complètes — Juvenilia, oeuvres posthumes, reliquiae, vol. 2, Paris, Louis Conard, 1952, p. 79); para Baudelaire, De Maistre era “o grande gênio de nosso tempo — um vidente!” (Charles Baudelaire, Oeuvres complètes — Correspondance générale, vol. 1, Paris, Louis Conard, 1947, p. 369); e curiosamente rascunha em seu diário: “Não há nada interessante sobre a terra além das religiões. O que é a religião universal? (Chateaubriand, De Maistre, os alexandrinos, Capé). Há uma religião universal, feita para os alquimistas do pensamento, uma religião que se desprende do homem, considerado como memento divino” (Charles Baudelaire, Journaux intimes, Paris, G. Crès et Cie, 1920, p. 81). Segundo um autor de tendência perenialista, em Baudelaire se encontra a “práxis” da teoria contrarrevolucionária que De Maistre expressa com a famosa antimetábole das Considérations: “O restabelecimento da monarquia, que se chama ‘contrarrevolução’, não será uma revolução contrária, mas o contrário da revolução”. “Onde a revolução mobiliza, planifica, instrumentaliza”, continua o sobredito autor, “Baudelaire faz seu dever desmobilizar, aumentar o sentimento da singularidade e celebrar o inútil. Aplicação rigorosa do método que ele encontra em Maistre”.
Tudo isso, enfim, que menciono apenas de passagem em nota de rodapé (e infelizmente não posso fazer mais do que isso), pede muitos aprofundamentos. Quanto à Revelação primitiva, no entanto, aprofundá-la-ei na medida do possível mais adiante. Dos perenialistas, como dito, também se tratará. [↵]

[26] Joseph de Maistre, Oeuvres complètes, vol. 1, Lyon, Vitte et Perrussel, 1884, p. 61. [↵]

[27] Ibid., p. 61. As Considérations ainda chamam a atenção por sua estranha doutrina política, em que alguns comentadores fazem notar — além de muitos outros problemas — uma sorte de “quietismo político” (que aquela célebre frase contrarrevolucionária, citada acima, significa tão bem). Apesar de não ter usado esta expressão, “quietismo político”, ouçamos o que disse Fernando Schlithler sobre o assunto: “[Joseph de Maistre] forneceu à covarde e exilada nobreza francesa uma interpretação anestesiante sobre a Revolução. Ele a considerava um castigo divino. Portanto, sendo a Revolução vontade de Deus de nos castigar, não poderíamos lhe opor resistência, pois seria ir contra a vontade divina. Tremendo sofisma. Era justamente o tipo de autoengano que a consciência pesada da nobreza precisava para afastar qualquer sentimento de remorso por sua covardia em ter fugido ao dever da batalha, mesmo que essa lhes custasse a vida. Era exatamente o que era necessário para fazer o liberalismo da Revolução Francesa triunfar na sociedade, aniquilando de vez o que restava da ordem social católica (O modernismo de Olavo de Carvalho, disponível em https://www.montfort.org.br/bra/veritas/religiao/modernismo_olavoc/, 2013).
O Pe. Nitoglia ofereceu um juízo sóbrio e confiável sobre a política de Joseph de Maistre (e de seus herdeiros plinianos, aos quais chama “teoconservadores”), e em verdade sobre toda a obra do Conde, no texto Il tradizionalismo esoterico: Joseph de Maistre, una nuova edizione de “Le serate di Pietroburgo” (disponível em https://doncurzionitoglia.wordpress.com/2014/04/16/il-tradizionalismo-esoterico-joseph-de-maistre-una-nuova-edizione-de-le-serate-di-pietroburgo/, 2014). Eis a conclusão a que chega o Padre: “Parece-me, portanto, pelo menos arriscado qualificar o De Maistre maduro ‘entre os porta-vozes mais importantes do movimento contrarrevolucionário e do catolicismo romano’ e de apresentar Os saraus [de São Petersburgo] como ‘uma pedra angular do pensamento contrarevolucionário’. Em De Maistre existem dois aspectos: um positivo, de crítica política aguda e profunda à Revolução Francesa, e infelizmente, também um negativo, repleto de reminiscências esotéricas, que o Savoiardo jamais deixou, e que o tornam um autor não seguro na doutrina católica teológica, espiritual e política” (grifo meu). Note-se de passagem que o Pe. Nitoglia atribui a “contrarrevolucionário” um sentido positivo, como se dissesse que De Maistre não é tão contrarrevolucionário quanto parece, ou quanto deveria ser. Se se toma essa expressão no sentido de uma “oposição a toda e qualquer revolução” (e provavelmente o sentido que lhe dá o Padre é algo próximo disto), então de fato De Maistre não é um contrarrevolucionário muito coerente; mas me parece uma expressão indigna de se empregar no âmbito da Política católica — tanto por sua indefinição, quanto por seu emprego generalizado entre autores não confiáveis. É verdade que nem todos os que a empregam adotam o sentido inicial que De Maistre lhe atribuiu: muitos a utilizam, por exemplo, no sentido de uma “reação católica à Revolução” (a maiúscula não é gratuita), mas então cabe perguntar a estes: O que é a Revolução? Ao que talvez me responderiam que “A Revolução é a ação social do demônio, isto é, da Maçonaria”, ou, para dizê-lo em uma linguagem mais angélica, “A Revolução é uma força cósmica difusa e indefinível”; ora, indefinida desta maneira a revolução, também a contrarrevolução o será.
Se as Considérations e o resto das obras de De Maistre são legítimos clássicos, como o consideram alguns de seus leitores, ignoro-o por completo. O que sei é que definitivamente não recomendo a leitura a quem não seja tomista formado e experimentado (coisa que não sou; se arrisquei-me a estudar estas obras, foi devido à urgência que o assunto me parece ter, e fi-lo com todo o cuidado, e tentando fiar-me sempre em autores abalizados). [↵]

[28] Joseph de Maistre, Oeuvres complètes, vol. 5, Lyon, Vitte et Perrussel, 1884, p. 243. A personagem que o diz é o Senador, um político russo maçom iluminado que representa o Joseph de Maistre esotérico. Há ainda outras duas personagens: o Conde, que representa a face católica ultramontana de De Maistre, e o Cavaleiro, que representa o leitor a que a obra se dirige (ou seja, a elite francesa, céptica e galicana, que deveria operar a Restauração). [↵]

[29] François Vermale, Notes sur Joseph de Maistre, inconnu, Chambéry, Perrin, 1921, p. 36: “A influência dos iluminados e de suas teorias foi grande sobre J. de Maistre. Ele próprio o reconheceu e admitiu que lhes devia a aquisição de uma série de ideias das quais tinha tirado proveito. Foi em sua frequentação que contraiu ‘o gosto de anunciar o porvir’, a que alguns chamaram ‘tique profético’, que deu a seu estilo uma cor tão particular e tão original”. [↵]

[30] Auguste Viatte, Le catholicisme chez les romantiques, Paris, De Boccard, 1922, p. 100. Parece-me que Viatte é “moderado demais” nesta afirmação; a meu ver, podem encontrar-se outras notas de romantismo em De Maistre (ainda que, a rigor, ele não seja um romântico). [↵]

[31] Para a exposição do pensamento do Visconde, seguirei de perto (mas com algumas discrepâncias) os valiosos artigos Bonald, o la constitución natural de las sociedades (em Revista de Estudios Políticos 45, 1949, p. 55-102) e El platonismo empírico de Luis de Bonald (em Revista de Estudios Políticos 74, 1954, p. 3-28), ambos de Leopoldo-Eulogio Palacios. [↵]

[32] Cf. Alphonse V. Roche, Le mot “traditionalisme” em Modern Language Notes 52-3, 1937, p. 167-171. Palacios parece enganar-se quando diz que a palavra “tradicionalismo” se ordena a caricaturar certos autores com o fácil expediente de um “ismo”. Muito pelo contrário, o Pe. Chastel, criador da sobredita palavra, refere-se a De Bonald sempre com deferência. É verdade, no entanto, que essa palavra também é empregada com aquela finalidade — normalmente pelos liberais, pelos socialistas, et caterva. Observe-se, ainda, que alguns tradicionalistas se chamavam a si mesmos “revelacionistas” (e este será o termo que doravante usarei quando for necessário fazer alguma distinção entre os vários tipos de tradicionalismo que vimos no proêmio). Parece que se usava “revelacionista” para distinguir-se do tradicionalismo condenado de Lamennais (de que falarei mais adiante), o qual, segundo alguns, repousava antes em tradições humanas do que em divinas. Não subscrevo a esta distinção, e me sirvo de “revelacionista” para referir-me a todos os tradicionalistas, mennaisianos ou não. [↵]

[33] Louis de Bonald, Oeuvres complètes, vol. 1, Paris, Migne, 1864, c. 1078. [↵]

[34] Note-se bem a contraposição entre “geral” e “coletivo”. Em De Bonald isto terá consequências políticas. Diz-nos ele em seu Essai analytique (1800): “O grande erro político de J.-J. Rousseau é haver confundido a vontade geral e a vontade coletiva ou popular, e o grande erro ideológico de Condillac é igualmente haver confundido as ideias gerais e simples, e as ideias coletivas ou compostas sob o nome de ‘ideias abstratas’, equívoco que conduz ao ateísmo, como o de Jean Jacques conduz à anarquia” (Oeuvres complètes, vol. 1, Paris, Migne, 1864, c. 1013-1014). [↵]

[35] Louis de Bonald, Oeuvres complètes, vol. 3, Paris, Migne, 1864, c. 196. [↵]

[36] Ibid., c. 198. [↵]

[37] Ibid., c. 52. [↵]

[38] Lamennais, seu discípulo, dirá o mesmo. Não sei se “creio” é a melhor palavra, porque, se, como interpreta Palacios, se trata de verdades tão evidentes, vistas em Deus mesmo, talvez seja preferível começar com um “vejo”. Na realidade, essas verdades não são evidentes; mas se o fossem, seria possível negá-las? Por que De Bonald se preocuparia com a possibilidade da negação de verdades evidentes? Ora, por impossível que possa parecer, o pensamento moderno nos tem ensinado, há séculos, muitos modos de fazê-lo, e às vezes até com ares de sofisticação especulativa. [↵]

[39] Cf., por exemplo, Louis de Bonald, Oeuvres complètes, vol. 1, Paris, Migne, 1864, c. 1162-1163. Segundo De Bonald, o homem não pode ter inventado a linguagem, porque, para tê-la inventado, seria preciso que ele pensasse, mas para pensar é necessário estar já em posse da palavra; donde esta última ter sido revelada por Deus, e não inventada pelo homem. Ora, como disse o Pe. Bonaventure Gilson, o fato da comunicação da palavra e do pensamento ao primeiro homem é o fundamento do tradicionalismo; e, como o mesmo Pe. Gilson notou muito bem, este fundamento já está em De Maistre — ainda que o Savoiardo, relembremos, só tenha se ocupado do problema en passant. Sem dúvida, se o Conde fosse consequente com seu inatismo, e portanto com a precedência da ideia em relação ao signo, não teria dito que a linguagem só poderia ter sido obra de Deus; porém, como para ele “o pensamento e a palavra não são outra coisa que dois magníficos sinônimos” (Oeuvres complètes, vol. 4, Lyon, Vitte et Perrussel, 1884, p. 120), a conclusão da origem sobrenatural da linguagem se impõe: “Nenhuma língua poderia ter sido inventada, nem por um homem [sozinho], que não poderia se fazer obedecer, nem por muitos deles, que não teriam podido se entender” (Ibid., p. 87). [↵]

[40] Ibid., c. 1093. Mais adiante tentarei mostrar que esta definição encerra graves problemas. [↵]

[41] Ao contrário de De Maistre (mas também da tradição peripatética), o Visconde de Bonald só admitia, como forma de governo legítima, a monarquia. [↵]

[42] Para tal, além de Palacios, valer-me-ei de Jacques de Monléon, Petites notes autour de la famille et de la cité (em Laval Théologique et Philosophique 3-2, 1947, p. 262-289). [↵]

[43] É assim que no-lo explica Jacques de Monléon, fiando-se no seguinte passo de Santo Tomás: “Finis enim generationis hominis est forma humana; non tamen finis hominis est forma eius, sed per formam suam convenit sibi operari ad finem” (In II Physic., lect. 11, n. 2). [↵]

[44] Louis de Bonald, Oeuvres complètes, vol. 1, Paris, Migne, 1864, c. 463.
Não posso deixar de mencionar novamente o problema da teoria bonaldiana da linguagem, que, pela notável influência que exerceu não só sobre o pensamento tradicionalista que se lhe seguiu, mas também sobre o pensamento católico em geral, mereceria um estudo mais generoso; mas em razão do imperativo da concisão, não faço senão remeter: antes de tudo, às aulas 21 e 22 da Escola Tomista de Carlos Nougué (curso online disponível em https://cursos.estudostomistas.org/curso/escola-tomista/), nas quais Nougué expõe as principais opiniões quanto ao problema da origem da Linguagem — inclusive a opinião tradicionalista —, para depois apresentar-lhe a solução tomista; e em segundo lugar, ao artigo de Jean Bastier, Linguistique et politique dans la pensée de Louis de Bonald (em Revue des sciences philosophiques et théologiques 58-4, 1974, p. 537-560), no qual Bastier mostra que a linguística bonaldiana deve muito a Rousseau e ao verbete “Língua” da Encyclopédie (o artigo, no entanto, deve ser lido com muitas ressalvas). Alguns dizem, ainda, que esta linguística do Visconde de Bonald parece ter ganhado, de algum modo, uma nova elaboração no estruturalismo de Saussure (cf., por exemplo, Fernando Bastos de Ávila S.J., O pensamento social cristão antes de Marx, Rio de Janeiro, José Olympio, 1972, p. 36); porém isto já me parece mais discutível. O princípio da solução de Santo Tomás para o problema da causa eficiente (e pois da origem) da Linguagem se lê em In I Perih., lect. 6, n. 8. É importante observar que quando Saint-Martin e os tradicionalistas falam da origem divina da linguagem, “linguagem” parece ter, antes de tudo, o sentido de “língua” (por isso, eu tenho escrito com “L” minúsculo), e “língua” assim se define: “um todo composto de determinados fonemas e de determinadas palavras que se combinam segundo certas regras para significar nossas concepções mentais e comunicá-las aos demais” (Carlos Nougué, Suma gramatical da língua portuguesa, São Paulo, É Realizações, 2015, p. 40). “Segundo certas regras”, quer dizer, segundo as regras da arte da Linguagem (agora com “L” maiúsculo); esta arte, sim, fazia parte dos conhecimentos que Adão recebeu de Deus por infusão (não por revelação, como dizem os tradicionalistas); no entanto, a língua, produto da Linguagem, não tem origem divina: foi criada por Adão. [↵]

[45] Para esta parte, foi extremamente valiosa a leitura de: A. Fonck, Lamennais em Dictionnaire de Théologie catholique, vol. 8-2, Paris, Letouzey et Ané, 1925, c. 2473-2526 — com o qual, aliás, o Pe. Meinvielle concorda integralmente, de acordo com o que ele mesmo diz em sua interessante correspondência com o Pe. Garrigou-Lagrange O.P. acerca do liberalismo de Lamennais e de Maritain. Meinvielle estudou profundamente o assunto em seu livro De Lamennais a Maritain[↵]

[46] Carlos Nougué, A raiz comum dos três Lamennais, disponível em https://www.estudostomistas.com.br/2022/06/a-raiz-comum-dos-tres-lamennais.html, 2022). [↵]

[47] Além de De Maistre, contam-se entre os autores que mais o impressionaram: Rousseau, Pascal, e especialmente Chateaubriand (três autores que são sempre associados ao tradicionalismo pelos estudiosos). Mas, sem dúvida, Lamennais é antes bonaldiano do que maistriano. Em verdade, por vezes Lamennais está para De Bonald assim como Espinosa está para Descartes, ou seja, o bonaldismo de Lamennais é às vezes mais consequente que o do próprio De Bonald. Sobre isso, disse com muita justeza o Pe. Gilson que os sistemas filosóficos não nascem de um dia para o outro; frequentemente a ideia-mãe permanece estéril no espírito que a concebeu, para ser plenamente desenvolvida só depois de adotada por outro espírito mais rigoroso, mais independente e mais audacioso. (Donde o tradicionalismo mennaisiano me parecer o tradicionalismo por antonomásia.) De qualquer modo, ambos — De Maistre e De Bonald — encorajavam o trabalho de Lamennais. O Visconde de Bonald chegou a escrever um artigo em defesa do sistema mennaisiano, o qual artigo foi incorporado posteriormente como apêndice à Défense de l’Essai. É verdade que De Maistre o encorajava com alguma ressalva, mas o fato é que ele o fazia — talvez por causa daquele seu “pragmatismo antirracional” tão rousseauniano, e que curiosamente se encontra também em Robespierre: se a doutrina é falsa, pouco importa, ao menos é boa (útil); mas se é boa, não será porque é verdadeira? (Isto também está em De Bonald, como não poderia deixar de ser.)
Estamos, diga-se muito en passant, começando a ter alguma noção da profundidade da influência de De Maistre. Consideremos, por exemplo, apenas um dos casos em que tal influência se faz sentir muito além do tradicionalismo: o caso do Cardeal Newman — que a propósito não era o melhor exemplar de ultramontano. Em seu Essay on the development of christian doctrine (1845), Newman declara ser De Maistre um dos autores que inspiraram sua tese (há quem queira diminuir o peso desta influência, mas infundadamente parece-me). O Cardeal não menciona exatamente o que leu no Conde, mas é provável que se trate da ideia da insuficiência das fórmulas dogmáticas: “[Se] o cristianismo nunca tivesse sido atacado, ele nunca teria escrito para fixar o dogma […]. Os verdadeiros autores do Concílio de Trento foram os dois grandes inovadores do século XVI […]. A fé, se a oposição sofística jamais a tivesse forçado a escrever, seria mil vezes mais angélica […]. O estado de guerra ergueu estas veneráveis muralhas em torno da verdade: elas a defendem, sem dúvida, mas também a escondem; elas a tornam inatacável, mas, por isso mesmo, menos acessível” (Oeuvres complètes, vol. 1, Lyon, Vitte et Perrussel, 1884, p. 251-252; grifos meus). [↵]

[48] Deste mesmo Buffier (1661 – 1737), diga-se ainda de passagem, Balmes (1810 – 1848) aproveitará não pouca coisa; quando este último fala, por exemplo, em “senso comum”, isto nada tem que ver com tomismo. Vê-lo-emos muito brevemente mais adiante, porém registre-se que, conquanto a obra de Balmes não mereça ser menosprezada, sua doutrina filosófica, diz-nos Zeferino González O.P., “encerra um grave defeito, qual seja, sua tendência ao cepticismo objetivo e ao fideísmo de Jacobi” (Historia de la Filosofía, vol. 4, 2. ed., Madrid, Agustín Jubera, 1886, p. 455). Mas certamente Balmes não era mennaisiano. [↵]

[49] Félicité de Lamennais, Défense de l’Essai sur l’indifférence en matière de religion, 3. ed., Paris, Belin-Mandar et Devaux, 1828, p. 179-180. [↵]

[50] Félicité de Lamennais, Essai sur l’indifférence en matière de religion, vol. 1, Paris, Tournachon-Molin et H. Seguin, 1817, p. 53. [↵]

[51] Félicité de Lamennais, Essai sur l’indifférence en matière de religion, vol. 3, Paris, Librairie Classique-Élémentaire, 1823, p. 200-201. Neste sentido, o macumbeiro iluminado Joseph de Maistre, no já citado Mémoir au Duc de Brunswick, nos diz que “a verdadeira religião tem bem mais do que dezoito séculos”, e prossegue citando um verso de Louis Racine (filho do grande Racine, e aparentemente jansenista como o pai), “ela nasceu no dia em que nasceram os dias”. Sem dúvida, há mais de um modo de interpretar esta afirmação, e nem todos estão em desacordo com o Catolicismo; mas parece óbvio que aqui é preciso ter em mente o conjunto do sobredito Mémoir e do restante das obras maistrianas para interpretá-la — a meu ver, com justeza — como heterodoxa. Mais: por vezes o Conde dá a entender que a Igreja nada define de novo no que diz respeito aos dogmas, apenas ratifica os dogmas que o paganismo já conhecia pela tradição primitiva: “Que verdade”, De Maistre se pergunta nas Soirées, “não se encontra no paganismo?” Não à toa, a Clef des grands mystères (1861), de Éliphas Lévi — o maior ocultista do século XIX —, leva uma epígrafe de Joseph de Maistre que diz, entre outas coisas, que “as tradições antigas são todas verdadeiras”, que “o paganismo inteiro não é senão um sistema de verdades corrompidas e deslocadas”… (A propósito, a Clef foi vertida para a língua inglesa por ninguém menos que Aleister Crowley.) Ainda estudaremos o assunto com mais detença. [↵]

[52] O que é compreensível se se considera aquele contexto em que o tradicionalismo (ao menos em suas manifestações mais, digamos, conservadoras) era, ou queria ser, antiliberal, e, efetivamente, à época parece ter sido uma das poucas barreiras que protegiam os católicos do câncer do liberalismo; por muito frágil barreira que fosse — ademais de perigosa —, é possível que uma condenação mais cabal de todos os tradicionalismos, naquele momento, fornecesse aos liberais e aos galicanos ocasião de dizer que tudo o que os tradicionalistas sustentavam era mau, mesmo aquilo que estes diziam com acerto (contra o liberalismo e contra o galicanismo, muito por exemplo) — o que talvez redundaria em consequências desastrosas para a Igreja; parece, pois, que era mais urgente deixar plenamente condenado o liberalismo. Mas teremos oportunidade de ver que, sim, se a segunda encíclica for lida com atenção, fica de certo modo condenado o tradicionalismo também.
Sobre a primeira condenação, parece-me necessário atentar para um fato importante que pode obnubilar-se quando os autores dizem (eu inclusive) que a encíclica condenou Lamennais sem dizer seu nome: em verdade, o que se condena é uma doutrina. A encíclica não nomeia ninguém; se a doutrina condenada pertence mais a um autor do que a outro, pouco importa: se um autor outro que Lamennais viesse a sustentar tal doutrina, estaria tão condenado quanto ele. [↵]

[53] Alguns parecem querer vincular Donoso ao chamado “tradicionalismo hispânico” e desvinculá-lo daquilo a que dão o nome “tradicionalismo europeu” (que é o tradicionalismo revelacionista de que tenho falado); o primeiro, conforme estes autores, é um pensamento contrarrevolucionário fundado sobre a Filosofia e sobre a Teologia escolásticas, e é essencialmente distinto do tradicionalismo europeu. Sobre isto, teçam-se algumas considerações despretensiosas. 1) Quanto a que o tradicionalismo hispânico seja contrarrevolucionário, pode ser mesmo que o seja, porém é difícil crer que a contrarrevolução seja um defeito exclusivamente hispânico, afinal ela foi formulada por De Maistre (o que supõe uma prioridade pelo menos cronológica). 2) Quanto a que seja fundado na escolástica, ainda pode ser mesmo que o seja, mas dizer “escolástica” não é dizer “tomismo”; até onde sei, Scot, por exemplo, era tão escolástico quanto Santo Tomás, e o pensamento do primeiro está nos antípodas do pensamento do Boi Mudo; ademais, a maior parte dos escolásticos se distancia da Política tomista em não poucos pontos importantes. 3) Quanto a que seja essencialmente distinto do tradicionalismo europeu, também pode ser que o seja, e por ora não importa. O que se discute é a influência decisiva ou não sobre Donoso do tradicionalismo europeu. Veremos que, sim, Donoso deve muito a ele.
Sobre o tradicionalismo hispânico — chamado também “tradicionalismo político”, em detrimento do chamado “tradicionalismo filosófico” dos franceses (terminologia que me parece de evitar-se) — haveria muito o que investigar. É preciso notar, contudo, que, até onde tenho notícia, seu fundamento escolástico não está exatamente em Santo Tomás mas em Salamanca. Isto já diz muita coisa; também diz muita coisa a mordaz (e capenga) crítica que algum representante atual do tradicionalismo hispânico fez recentemente ao Pe. Calderón. Acrescente-se, ainda, que, a menos que a contrarrevolução hispânica seja outra que a francesa, encontra-se aí, na contrarrevolução, um ponto de contato bastante sólido entre hispânicos e europeus, ademais de um indício de tendências milenaristas — pelo menos em nossos dias. Este milenarismo que é predominante nos hispânicos começa a se espalhar no Brasil através de traduções irresponsáveis que se têm publicado entre nós. Teremos, mais adiante, oportunidade de ver um pouco disso tudo. [↵]

[54] Publicado no periódico L’Ami de la Religion 159, 1853, pp. 21-33, 49-56, 69-77, 189-195. As críticas de Gaduel suscitaram uma polêmica contra a revista de Louis Veuillot, L’Univers, porque Veuillot foi o responsável pela publicação do livro de Donoso na França. As críticas do Pe. Gaduel são contundentes, e dividem-se em: 1) erros sobre Deus; 2) erros sobre a Santíssima Trindade; 3) erros sobre o livre-arbítrio; 4) erros acerca do pecado original em sua relação com a ordem geral das coisas; 5) erros sobre o pecado original em sua relação com a natureza humana; 6) erros sobre os motivos de credibilidade do catolicismo. Para Gaduel, alguns destes erros — por vezes bastante graves — estão apenas na falta de precisão terminológica, na pena, e outros estão indubitavelmente no espírito de Donoso. (Mas a tradução francesa de que se valeu o Pe. Gaduel leva-o a atribuir alguns erros de pena que não estavam originalmente no Ensayo). Gaduel reprova, antes de tudo, o erro (bastante generalizado na época) de escrever sobre assuntos delicadíssimos sem o preparo necessário para tal e sem pedir que as autoridades eclesiásticas examinem o que se pretende publicar; reconhece diversas vezes a boa vontade de Donoso, e sua sincera devoção à Igreja, mas estas qualidades não impedem que cometamos erros, e o que Gaduel critica são as ideias e não a pessoa do Marquês — apesar de, em alguns momentos, fazê-lo com certa mordacidade (compreensível, mas desnecessária). Também é preciso dizer que não parece razoável da parte de um autor esperar que seus leitores conheçam suas intenções, sua disposição de espírito, e, com isto em mente, interpretar o que com descuido foi escrito; Gaduel conhece as intenções de Donoso, mas critica o que efetivamente se disse. Quanto à polêmica, as respostas, em geral, não estão à altura da crítica; hodiernamente, o procedimento consiste em desqualificar os artigos de Gaduel dizendo que este era vigário-geral de Mons. Félix Dupanloup (bispo católico liberal) — truque que, curiosamente, não se aplica à Filosofía fundamental de Balmes, cuja tradução francesa de 1852 foi calorosamente recebida e prefaciada pelo mesmo Mons. Dupanloup… A mais digna das respostas que conheço é a que a Civiltà Cattolica publicou, ainda em 1853, a favor de Donoso; esta nos fala de algumas imprecisões de Gaduel — o que, no entanto, não salva o Ensayo —, e, no fim das contas, o que era para ser uma crítica ao Pe. Gaduel, acaba reforçando sua principal reprovação, já que, por exemplo, no fim do artigo se recomenda uma edição italiana do Ensayo abarrotada de notas que retificam, que esclarecem, etc.
Fedeli e Paulo Miranda, no já citado artigo Mestre de fábulas (disponível em https://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/mestre/, s/d), fazem notar outros erros contidos no Ensayo. Ali se vê algo do mais alto interesse: o influxo sobre Donoso da dialética romântica (tese-antítese-síntese); esta tentativa de transpor a dialética dos alemães para o Catolicismo, além de encerrar problemas sérios, leva Donoso — em certo momento em que faz comparações entre a Trindade Santíssima de um lado, e Adão, Eva e Abel do outro — a exprimir-se como os triteístas e como os maniqueus, como havia notado o Pe. Gaduel.
Seria, porém, uma solene injustiça contra Donoso se se dissesse que seu livro se reduz a um amontoado de erros. De modo algum; mas, a despeito das coisas boas que nele se encontram, não se pode dizer que é uma obra segura. [↵]

[55] Donoso Cortés, Obras de Don Juan Donoso Cortés, vol. 4, Madrid, Imprenta de Tejado, 1854, p. 124. [↵]

[56] Ibid., p. 40; grifo meu. [↵]

[57] Ibid., p. 59-60; grifo meu. [↵]

[58] Ibid., pp. 54 e 58; grifos meus. Estas passagens citadas têm uma estranheza que parece ir bastante além dos problemas gnosiológicos. Voltaremos a ela mais adiante. [↵]

[59] Donoso Cortés, Obras de Don Juan Donoso Cortés, vol. 3, Madrid, Imprenta de Tejado, 1854, p. 299-300; grifo meu. [↵]

[60] Ibid., p. 410. [↵]

[61] Emilio Serrano Villafañe, El tradicionalismo filosófico y Donoso Cortés em Verbo 171-172, 1979, p. 79-107. Se é verdade que a adesão de Donoso às teses tradicionalistas não é servil, não se me afigura correto dizer ­com Villafañe que esta adesão não seja sincera. Com efeito, proposições equilibradas quanto ao papel e à natureza da razão não provam que Donoso no fundo não era tradicionalista, justamente porque elas se encontram em quase todos os tradicionalistas. Poderiam servir para mostrar que o tradicionalismo donosiano é mitigado; porém, uma vez mais, a falta de rigor terminológico e de método em Donoso impossibilitaria qualquer certeza quanto ao que realmente pensa — ou ao menos torná-la-ia sumamente árdua de alcançar. [↵]

[62] Santo Tomás de Aquino, De verit., q. 10, a. 7, co.: “Ut igitur cognitionem mentis secundum obiecta distinguamus, triplex cognitio in mente nostra invenitur. Cognitio, scilicet, qua mens cognoscit Deum, et qua cognoscit seipsam, et qua cognoscit temporalia”. [↵]

[63] E no entanto já vimos que esta leitura do tradicionalismo bonaldiano não procede. Neste sentido, o tradicionalismo de Ventura é tão verdadeiro quanto o do Visconde de Bonald. [↵]

[64] Constantin Lecigne, Joseph de Maistre, Paris, Lethielleux, 1914, p. 373-374. [↵]

[65] Cf. Ibid., p. 373. [↵]

[66] Louis Veuillot, Mélanges religieux, historiques, politiques et littéraires, vol. 14 (1867-1868), Paris, Louis Vivès, 1876, p. 58-59. [↵]

[67] Joseph Burninchon S.J., La Compagnie de Jésus en France — Histoire d’un siècle (1814-1914), vol. 4 (1860-1880), Paris, Beauchesne, 1922, p. 30. [↵]

[68] Os adversários cometeram também seus erros. Aqui não é lugar apropriado para comentá-los, mas para que eu não passe por galicano nem por liberal, menciono um opositor de Mons. Gaume que, partindo corretamente do pressuposto de que os gaumistas idealizavam a Idade Média, cometeu o erro de “desidealizá-la” demais, quer dizer, exagerou-lhe os aspectos negativos, transmitindo pois uma falsa ideia do que de fato fora o Medievo… Um patente desserviço, deve dizer-se. [↵]

[69] Obviamente isto nada tem que ver com aquele “integrismo” que os modernistas empregavam para denominar (pejorativamente) os que seguiam a D. Lefebvre no contexto do Concílio Vaticano II. [↵]

[70] Sobre o assunto, a leitura de Da arte do belo, de Carlos Nougué, é indispensável. Ali é que se encontra esta bela analogia. Evidentemente, quando aqui digo “arte” refiro-me às artes do belo. Estritamente falando, a palavra “arte” é muito mais abrangente; a Gramática, por exemplo, é uma arte sem no entanto ser arte do belo. [↵]

[71] Ernest Hello, L’Homme, Paris, Victor Palmé, 1872, p. 344. No mesmo livro, quando Hello fala de Virgílio, concede que não devemos desprezar os antigos, porque eles “possuem certas qualidades, inferiores, mas reais, que não se podem exagerar nem contestar […]. Examino agora os sistemas mais que os escritores, mas não quero fazer crer que os defeitos, que se devem em parte aos sistemas, me tornem injusto diante do que há de real e de positivo nos homens e em seus talentos. […] Pela palavra: Arte, entendo tudo aquilo que, escultura, pintura, palavra, prosa ou verso, exprime ou representa as tradições do mundo e o ideal das nações” (Ibid., p. 350-351). Hello escreveu coisas memoráveis, mas passos como esses às vezes me fazem ter dúvida quanto ao lado que ele escolheria se tivesse vivido o suficiente para envolver-se na querela da sacrílega L’Art Sacré… [↵]

[72] Cf. Joseph-François Lafitau S.J., Moeurs des sauvages ameriquains, comparées aux moeurs des premiers temps, vol. 1, Paris, Charles Estienne Hochereau, 1724, p. 32 ss. [↵]

[73] Paulo Miranda e Orlando Fedeli, Mestre de fábulas, disponível em https://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/mestre/, s/d; grifo meu. [↵]

[74] A principal obra de Drach é o volumoso De l’harmonie entre l’Église et la Synagogue, ou Perpétuité et catholicité de la religion chrétienne (1844), em que pretende, valendo-se do Talmud e da “boa Cabala” (e “qabbala” significa “tradição”), “mostrar a perfeita conformidade entre a doutrina da sinagoga antiga, ainda fiel, herdeira ao mesmo tempo da revelação primitiva, da aliança de Abraão, da lei do Sinai, e a doutrina da Igreja, com que [doutrina] Jesus Cristo, Nosso Senhor, substituiu [a da sinagoga], quando ela, a sinagoga, se desviara do caminho do Deus de Israel” (De l’harmonie entre l’Église et la Synagogue, vol. 1, Paris, Paul Mellier, 1844, p. VII); trata-se, pois, daquela Apologética tão tradicionalista, que procura muito mais na tradição do que na Filosofia e na Teologia sãs as provas em favor da Religião: “É principalmente nas duas partes da tradição, a talmúdica e a cabalística, que nós encontramos nossas provas de fato em favor do dogma católico. Demos sempre preferência a esta sorte de provas, porque, em matéria de polêmica religiosa, elas importam de muito, em nossa opinião, sobre os argumentos raciocinados, os quais a má fé nunca deixa de contrariar com argúcias” (Ibid., p. XVII). Muito a propósito é o que disse o Pe. Joüon S.J., renomado hebraísta, em um verbete sobre a Cabala: “Toda demonstração racional da verdade do cristianismo ordenada à conversão dos crentes judeus deve repousar sobre o terreno comum da philosophia perennis [no bom sentido] e das verdades admitidas pelas duas crenças: possibilidade e existência do sobrenatural, Revelação, profecia, promessa messiânica, etc. A kabbala, falsa em sua doutrina filosófico-religiosa, perigosa por seus procedimentos antirracionais, malsã pelo fedor de erotismo que emana, está certamente além desse terreno comum” (Kabbale em Dictionnaire apologétique de la foi catholique, vol. 2, 4. ed., Paris, Beauchesne, 1924, c. 1766-1767). Drach, no entanto, não foi o único a utilizar a Cabala com propósitos apologéticos no século XIX: fê-lo também o missionário Eugène Boré, por exemplo, mennaisiano e colaborador em L’Avenir. Não digo que tudo o que Drach escreveu é mau. Ele era dono de uma erudição profunda e gozava de tanta autoridade entre os católicos, que até o Pe. Perrone S.J. — talvez o teólogo mais importante do século XIX — se serviu de suas obras. Sobre a existência de uma “boa Cabala”, diga-se de passagem que o Pe. Meinvielle também a admite em seu livro De la Cábala al progresismo[↵]

[75] Cf. Nicolas-Sylvestre Bergier, Théologie, vol. 3, Paris, Panckoucke, 1790, p. 367-374. Mais tarde, o antigo professor de Mons. Gaume no seminário, Mons. Gousset (1792 – 1866), juntamente com Mons. Doney (1794 – 1871) — ambos de formação mennaisiana —, reeditarão a obra de Bergier sob o título Dictionnaire de Théologie, e o sobredito verbete aí está sem alteração (cf. Thomas Gousset e Jean Doney [ed.], Dictionnaire de Théologie, vol. 5, Besançon, Gaume Frères, 1843, p. 510-519).
Não podemos, contudo, quanto ao ponto que aqui interessa, ignorar a influência do pensamento dos protestantes ingleses e dos românticos alemães sobre o tradicionalismo francês; vimos, por exemplo, Bonnetty publicando uma tradução de Schlegel (cf. a. I, §I, n. 6). Lembremo-nos que no contexto da Revolução Francesa muitos, como De Bonald, fugiram para outros lugares da Europa (esses fugitivos ficaram conhecidos como “emigrés”), o que possibilitou um contato mais direto com o que se produzia em Filosofia e em Teologia fora da França. Ademais, temos a Maçonaria, que punha em contato pensadores de várias partes do mundo. [↵]

[76] Santo Tomás de Aquino, Suma teológica, Ia-IIae, q. 107, a. 3, co.; grifo meu. [↵]

[77] Gregório XVI, Singulari Nos, disponível em https://www.vatican.va/content/gregorius-xvi/it/documents/enciclica-singulari-nos-25-giugno-1834.html, 1834; grifo meu. Lembremo-nos que a encíclica anterior, Mirari vos (1832), visava antes de tudo ao liberalismo, e não ao tradicionalismo. [↵]

[78] Apud André-Vincent Delacouture, Observations sur le décret de la Congregation de l’Index du 27 septembre 1851, Paris, Plon, 1852, p. 184-185. Note-se que este livro do Pe. Delacouture deve ser lido com muitas ressalvas. [↵]

[79] Denzinger, n. 1649-1652. Cf. também André Sisson, Traditionalisme. Décret de la Sacrée Congrégation de l’Index em L’Ami de la Religion 170, 1856, p. 709-713. [↵]

[80] Pio IX, Dei Filius, disponível em https://www.vatican.va/archive/hist_councils/i-vatican-council/documents/vat-i_const_18700424_dei-filius_la.html, 1870. [↵]

[81] Cf. Henri Ramière S.J., La question du traditionalisme après le Concile du Vatican em Études 4, 1873, p. 486-487. [↵]

[82] Jean-Michel-Alfred Vacant, Études théologiques sur les constitutions du Concile du Vatican, vol. 1, Paris, Delhomme et Briguet, 1895, p. 610. [↵]

[83] Cf. Ibid., p. 287. [↵]

[84] Sobre a correspondência, cf. Lettres inédites de Lamennais au chanoine Buzzetti em Études 122, 1910, p. 204-221 e Amis italiens de Lamennais: Lettres inédites em Gregorianum 18-1, 1937, p. 88-106, ambos de Paul Dudon S.J. Sobre a crítica de Buzzetti a Lamennais, cf. Amato Masnovo, Vincenzo Buzzetti e Félicité Robert de la Mennais em Rivista di Filosofia Neo-Scolastica 12-1, 1920, p. 42-55. [↵]

[85] Quanto a isso, Taparelli é seguido por outros neotomistas, como Liberatore, Zigliara, Palmieri e Cathrein. Tese similar — inspirada, talvez, nas mesmas fontes — também encontraremos nos “tradicionalistas políticos”, como José Pedro Galvão de Sousa, em que a coisa se expressa em termos de uma “concepção orgânica da sociedade”. (Observe-se que esta concepção da sociedade, em De Bonald, tem muito de martinista quando se diz que uma das leis que regem a Igreja, o estado e a família, é a universalidade do número três.) O Pe. Taparelli é autor importante (o Papa Pio XI chegou a recomendar a leitura de uma famosa obra dele sobre Direito Natural, na encíclia Divini illius Magistri, de 1929); mas não sejamos cegos a ponto de dizer que é perfeito. A autoridade dos neotomistas é bastante menor que a dos escolásticos barrocos, por exemplo, e a destes últimos é ainda muito menor do que a dos medievais. Isto nem se discute. [↵]

[86] Alguns incluem nesta tradição o Cardeal Caetano, São Roberto Belarmino e o Cardeal Billot. De qualquer modo, tanto os autores da primeira corrente quanto os da segunda corrente (com algumas poucas exceções) deixam de sustentar o mais importante: a ordenação essencial do poder temporal ao poder eclesiástico. Aderindo quase todos à tese humanista da ordenação indireta do fim natural ao fim sobrenatural, acaba-se por sustentar que o fundamento do Direito Político se acha no Direito Natural mas sem nada referir ao Direito Divino, ademais de, com isso, acabar por abrir espaço à liberdade religiosa do Concílio Vaticano II. Tal é, hodiernamente, a postura do “tomismo fides et ratio”, legalizado no mundo acadêmico e estéril no mundo real quanto à defesa da Realeza Social de Cristo: postura incapaz, como disse Pio XII, “de opor qualquer coisa às forças subversivas do ateísmo”. Também não é à toa que este mesmo tomisminho afofado e gabarola se tenha frequentemente mostrado — junto com o teoconservadorismo da TFP — simpático ao perenialismo, pelo menos no âmbito político, convergindo no sentido daquilo a que se tem chamado “liberal-conservadorismo”. [↵]

[87] Em seu uso corriqueiro e menos técnico, a expressão “senso comum” pode ser entendida de diversos modos. Quanto à noção filosófica de “senso comum” não é invenção de Garrigou-Lagrange; ela já se encontrava em diversos outros autores modernos, como Giambattista Vico (1668 – 1744) e o Conde de Shaftesbury (1671 – 1713). Mas, de fato, ela parece ter ganhado maior repercussão com a Escola Escocesa (“common sense”), e, entre os escolásticos, sobretudo com Balmes (“sentido común”), que parece ter sofrido o influxo dos escoceses, sim, mas também de Buffier S.J., “mennaisiano avant la lettre”, segundo os próprios mennaisianos, como já ficou dito (cf. nota 48). Na realidade, há toda uma querela escolástica, anterior ao tradicionalismo, acerca dos critérios da verdade; mas nas discussões filosóficas que suscitaram o emprego mais corrente desta noção no século XIX, o tradicionalismo teve um papel importante, sem dúvida. São, porém, discussões tipicamente modernas (embora questões análogas já tenham aparecido no contexto — bastante diverso, naturalmente — do estoicismo). Em Santo Tomás, o sensus communis é coisa completamente diversa; trata-se de um sentido interno que grosso modo unifica as informações sensíveis dos sentidos externos para a formação dos fantasmas na dinâmica do conhecimento humano, e equivale ao koinḕ aísthēsis de Aristóteles (traduz-se mais apropriadamente por “sentido comum”). O “senso comum” tradicionalista (já presente em De Maistre) é sinônimo antes de “consentimento universal” — o que, porém, não impede que o “senso comum” de Garrigou-Lagrange tenha algo de tradicionalista por certo ângulo. [↵]

[88] Note-se que só foi tratado o neotomismo italiano; mas é importante observar que da revitalização do tomismo participaram autores de outras nacionalidades, como o importante teólogo alemão Josef Kleutgen S.J. (1811 – 1883) e o francês Henri Ramière S.J. (1821 – 1884). Em ambos — principalmente em Ramière — se encontra aquele mesmo problema de alguns italianos: resquícios de suarezismo. (Mas parece que, de certo modo, este é o problema de quase todo o tomismo depois de Suárez.) Também os manuais do protestante alemão Wolff (1679 – 1754), segundo alguns autores, tiveram influência considerável entre os filósofos católicos. [↵]

[89] Sobretudo em A liberdade no Império, publicado em 1977 pela Editora Convívio como resultado de sua tese de mestrado; a edição, revista e aumentada, que tenho em mãos possui outro título: A ideia de liberdade no século XIX: O caso brasileiro[↵]

[90] Ubiratan Borges de Macedo, A ideia de liberdade no século XIX: O caso brasileiro, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1997, p. 127. [↵]

[91] Ibid., p. 127. [↵]

[92] Felix Contreiras Rodrigues, Velhos rumos políticos, Tours, E. Arrault & Cia., 1921; recensão de Jackson de Figueiredo em A Ordem 3, 1921, p. 45. [↵]

[93] Ubiratan Borges de Macedo, A formação intelectual de Alexandre Correia em Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo 79, 1984, p. 33. Aqui também, em alguns momentos, o julgamento de Ubiratan se vê comprometido por sua visão do tradicionalismo como ideologia, e por seu parti pris liberal. [↵]

[94] Cf. Ibid., p. 38. [↵]

[95] Ibid., p. 38. Em honra da justiça, diga-se contudo que Alexandre Correia não admite, na referida tese, a sanção dos séculos como critério absoluto de veracidade, o que já seria suficiente para concluir que seu tradicionalismo, se existe, não é puro. Infelizmente não tenho acesso à sua tese; tudo o que pude saber dela está no supracitado artigo do Prof. Ubiratan e reduz-se a um punhado de citações. [↵]

[96] Cf. Carlos Nougué, No fragor da batalha, Formosa, Edições Santo Tomás, 2023, p. 127-132. [↵]

[97] Curzio Nitoglia, Pio IX, Pio X, Leone XIII e Pio XI — Quali le diversità sostanziali?, disponível em https://doncurzionitoglia.wordpress.com/2015/02/25/pio-ix-pio-x-leone-xiii-e-pio-xi-quali-le-diversita-sostanziali/, 2015. [↵]

[98] Ibid.[↵]

[99] Apud Curzio Nitoglia, Salazar filosofo della politica e vero uomo di governo, disponível em http://www.doncurzionitoglia.com/salazar_filosofo_e_uomo.htm, 2010. [↵]

[100] Jackson de Figueiredo, Apologie pour l’Action Française, disponível em https://www.institutojacksondefigueiredo.org/coluna-do-patrono/jf-literatura/apologie-pour-iaction-francaise, 1927. Jackson sustenta que a condenação foi oportuna tanto em termos doutrinais quanto em termos de prudência política; para Carlos Nougué, a quem sigo quanto a isto, parece não ter sido oportuna em termos de prudência política. [↵]

[101] Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma contra os gentios, l. III, c. 69, n. 15. [↵]

[102] Orlando Fedeli, Origens do romantismo alemão, disponível em https://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/romantismo1/, s/d. Muito importante é notar que a passagem citada continua assim: “Não se confunde, porém, essa iluminação sobrenatural com a de nenhuma confissão religiosa particular. Acreditavam os ‘iluminados’ que em qualquer religião se poderia receber a iluminação divina”. [↵]

[103] Ibid.; grifo meu. [↵]

[104] Ernest Hello, L’Homme, Paris, Victor Palmé, 1872, p. 274. [↵]

[105] Álvaro Calderón FSSPX, A candeia debaixo do alqueire, 2. ed., São Paulo, Castela Editorial, 2020, p. 295; grifo meu. Os perenialistas costumam negar que sua doutrina seja gnóstica. Orlando Fedeli e Fernando Schlithler, no livro Sob a máscara, sustentam que o seja. Alguns defendem que o fundamento metafísico sobre o qual se ergue o perenialismo é o que se tem chamado “panenteísmo”. Daniel Scherer, em A metafísica da revolução, discute o assunto proficuamente, e aborda também a posição de Fedeli; a gnose, para Scherer, é a espiritualidade que brota do panenteísmo. Em verdade, tanto o panteísmo quanto o panenteísmo, segundo Scherer, são expressões (filosóficas) daquilo a que ele chama “metafísica da imanência”. Sua conclusão se coaduna com a de Fedeli no sentido de que, para este último, tanto a gnose quanto o panteísmo são expressões (religiosas) daquilo a que ele, Fedeli, chamou “antropoteísmo”. A discussão é cheia de sutilezas, e o que aqui se faz não é senão um resumo brutal da coisa.
Alguns tomistas podem ser acusados de não ter entendido certos sistemas gnósticos por tê-los classificado como “panteístas” em vez de “panenteístas”. Sobre o panteísmo Maritain faz uma aguda observação que reproduzo em defesa desses tomistas: “Para que uma doutrina seja, com toda a justiça, qualificada de panteísta, não é necessário que declare formalmente que Deus e as coisas não fazem senão um (neste sentido bem poucos panteístas se confessam como tais). Basta que as afirmações, por ela assentadas, sejam logicamente inconciliáveis com a distinção absoluta entre Deus e as coisas. Esta observação é particularmente importante no que concerne às filosofias orientais cujo pecado comum é o panteísmo. Com efeito, esse panteísmo provém do próprio modo de pensar que elas empregam e que parece consistir, antes de tudo, no uso de conceitos análogos (que se realizam diversamente em coisas diferentes) como se existissem tais quais fora do espírito, como se por conseguinte houvessem coisas que permanecessem as mesmas enquanto se tornam essencialmente outras, em ‘planos’ diferentes do real. É assim que Atman é ao mesmo tempo Princípio supremo do universo, superior a toda multiplicidade, e o princípio constitutivo e distintivo de cada personalidade. Este modo de pensar — que encontramos também mais ou menos acentuado em todas as doutrinas de tendência ‘teosófica’ — permite, em aparência, escapar à censura de panteísmo, pois que, graças à contradição básica que ele comporta, permite afirmar diversidades essenciais entre termos que, logicamente, deveriam ser identificados. Mas, precisamente porque tais afirmações são apenas possíveis graças a uma contradição de fundo, implica na realidade um panteísmo inextirpável” (Elementos de Filosofia I: Introdução geral à Filosofia, trad. Ilza das Neves e Heloísa de Oliveira Penteado, 14. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1985, p. 180). [↵]

[106] Note-se que por “metafísicos” os perenialistas não fazem referência àquela que é a rainha das ciências, a Filosofia Primeira ou Teologia Filosófica ou Metafísica. Para eles, “metafísica” se refere grosso modo àquele conhecimento iniciático autossalvífico e autodivinizante de que já falamos; é o reconhecimento de uma suposta centelha divina, incriada mesmo, presente no homem, a centelhazinha do Mestre Eckhart (cf. a. I, §I, n. 5), condenada por João XXII; refere-se, em suma, à gnose. [↵]

[107] Curzio Nitoglia, L’equivoco guénoniano, disponível em http://doncurzionitoglia.net/2015/06/02/lequivoco-guenoniano/, 2015. Muito se fala em Guénon ao tratar do perenialismo, mas é preciso consignar que muito mais nocivos do que ele são um Jean Borella, um Olavo de Carvalho, porque, ao passo que Guénon se torna sufi (adepto de um misticismo islâmico), os outros dois permanecem “exotericamente” católicos. [↵]

[108] Cf. o decreto do Santo Ofício e o comentário do Pe. Gilleman S.J., disponíveis em https://www.estudostomistas.com.br/2014/03/o-sistema-do-milenarismo-mitigado-nao.html[↵]

[109] Diga-se, sobre a questão do “Grande Monarca”, que é uma tradição já presente nos joaquimitas, em Dante, et alii. Simplificando a coisa, trata-se de uma sorte de “Messias político” que, ao lado de um papa santo, será o responsável pela recristianização do mundo. Tal expectativa, infelizmente, tem adquirido certo vigor em alguns meios católicos. Na verdade, o mundo já tem um Grande Monarca: Nosso Senhor na pessoa do papa. Outro seria impossível, pelas razões aludidas pelo Filósofo (em III Pol.). [↵]

[110] Veja-se, por exemplo, esta carta que o Dr. Plinio escreveu a Alceu Amoroso Lima em 1930: https://www.pliniocorreadeoliveira.info/MAN_301230_PCO_AAL_profecias_santos.htm[↵]

[111] Cf. Carlos Nougué, No fragor da batalha, Formosa, Edições Santo Tomás, 2023, p. 253-260. [↵]

[112] Carlos Nougué, No fragor da batalha, Formosa, Edições Santo Tomás, 2023, p. 111. [↵]