(Texto revisado em 30 de outubro de 2023)
Pedro Valeriano
A pureza das intenções, a generosidade do coração, o ardor da eloquência, não substituirão jamais uma sólida doutrina.
Pe. Augustin Roussel
Os franceses são muito pouco argutos, e não conseguem ver erros comuflados. Se um satanista se apresenta a eles dizendo-se tradicionalista, aceitam-no. Sem perguntar qual seria seu tradicionalismo: o satanista.
Orlando Fedeli
A mudança que se operou em mim é totalmente diferente de como vós a imaginais. Minhas ideias, sempre as mesmas no fundo, se retificaram, se estenderam, se desenvolveram, só isso.
Lamennais
Sumário
Proêmio
Artigo I. Sobre o tradicionalismo do século XIX
§I. Considerações sobre a França
§II. Joseph de Maistre e as origens teosóficas do tradicionalismo
§III. Louis de Bonald, da palavra à Política
§IV. A coerência do tradicionalismo de Lamennais
§V. Donoso Cortés, tradicionalista ou não?
§VI. Alguns outros tradicionalistas
§VII. O mistério da Revelação primitiva
§VIII. A Igreja condenou o tradicionalismo revelacionista?
§IX. a) Tradicionalismo e neotomismo
b) Tradicionalismo e neotomismo no Brasil
§X. Um quasi excursus sobre Charles Maurras
Artigo II. Considerações finais: a herança doutrinal do tradicionalismo nos séculos XX e XXI
Parágrafo único
Proêmio [↵]
1. Nestes tempos de tintas apocalípticas — assim o Prof. Nougué costuma chamá-los —, é profunda a confusio linguarum que nos desorienta a nós católicos; mas é particularmente atordoante o caso das discussões em torno do que se costuma entender por “tradicionalismo”, como pretendo mostrar neste opúsculo.
Normalmente, não se deve perder muito tempo com o nome das coisas: de nominibus non est disputandum; contudo, a questão é de uma excepcionalidade tal, que me parece urgir uma investigação cuidadosa acerca do tradicionalismo — ou melhor, dos tradicionalismos. Se não, vejamos.
A palavra “tradicionalismo” pode ser entendida de diversos modos. Alguns dão-lhe o sentido de um simples apego às coisas tradicionais; outros querem com ela designar uma seita gnóstica; outros dela se servem para nomear o Catolicismo fiel à tradição litúrgica e doutrinal da Igreja; e há outros, ainda, que usam “tradicionalismo” no sentido de uma certa escola filosófica do século XIX (XVIII e XIX, mais precisamente), etc., etc., ad nauseam: simplificadamente, ou más doutrinas, ou doutrinas com mau nome.
Até aqui, nada de novo debaixo do sol; mas eis que as coisas começam a agravar-se: hoje, quase todos os sentidos de “tradicionalismo” se confundem de algum modo, e então têm-se católicos fideístas, católicos gnósticos, católicos milenaristas, e católicos católicos, todos frequentemente confundidos uns com os outros, não só pelos adversários da Religião mas também por si mesmos: o tradicionalista (católico tradicional) se vale frequentemente de autores tradicionalistas (do século XIX) que também inspiram de algum modo os tradicionalistas (perenialistas); o tradicionalismo (perenialista), por sua vez, há algumas décadas, e com sucesso, tem se infiltrado nos meios tradicionalistas (católicos), induzindo muitos tradicionalistas (católicos) ao erro. Como se vê, o nome “tradicionalismo” para designar o Catolicismo fiel à tradição litúrgica e doutrinal da Igreja, doravante “Catolicismo tradicional”, encerra não poucos problemas.