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segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Cristo foi pregado pelos pulsos?

Pedro Valeriano


Proêmio


1. Ao que tudo indica, não o foi. Há, no entanto, mormente entre os católicos tradicionais, quem argumente em sentido contrário. Fazem-no fundados na conhecida obra do Dr. Pierre Barbet (1883 – 1961), La passion de N.-S. Jésus-Christ selon le chirurgien (1950). É de espantar um pouco o fato de os católicos tradicionais aceitarem, sem mais, uma hipótese tão recentemente formulada, e que contraria uma tradição de dois mil anos. Não causa nenhum estranhamento ver nas igrejas imagens que O retratam pregado assim, pelos pulsos, quando sempre os cristãos O viram pregado à Cruz pelas mãos?


§I
Os argumentos do Dr. Barbet


2. Bem, leiamos, então, com que argumentos Barbet sustenta sua posição:
1) Com efeito, a imagem do Sudário mostra o ferimento no pulso, e não na mão.
2) Ademais, segundo experimentos (realizados pelo próprio Barbet), a palma da mão não suportaria o peso do corpo, de modo que as mãos de alguém assim crucificado seriam rasgadas pelos pregos em poucos minutos. Mas há um lugar no pulso que é suficientemente forte para suportar esse peso: é o chamado “espaço de Destot”.
3) Ademais, passando o prego pelo espaço de Destot, danificar-se-ia o nervo mediano, causando o recolhimento do polegar para a palma da mão, razão da aparente ausência do polegar no Sudário.

Já se percebe que o Dr. Barbet visa sobretudo a defender o Sudário — o que não conseguiu, como ainda veremos. Em verdade, quase nenhuma hipótese de Barbet se segue, inclusive a suposta causa mortis de Nosso Senhor por asfixia.


§II
Considerações preambulares


3. Antes de responder a cada um dos argumentos do Dr. Barbet, façamos preliminarmente algumas observações [1].

Em primeiro lugar, vejamos o que dizem as Escrituras sobre a Crucificação:
1) Zac XIII,6: “Então se lhe fará esta pergunta: Que chagas são essas no meio das tuas mãos [manuum]?”
2) Sl XXI,17: “Eles traspassaram as minhas mãos [manus] e os meus pés”.
3) Lc XXIV,39-40: “[39] Olhai para as minhas mãos [manus] e pés, porque sou eu mesmo; apalpai e vede: que um espírito não tem carne nem ossos, como vós vedes que eu tenho. [40] E dizendo isto, mostrou-lhes as mãos [manus] e os pés.”
4) Jo XX,20.27: “[20] E, dito isto, mostrou-lhes as mãos [manus] e o lado […]”. “[27] Logo disse a Tomé: Mete aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos [manus] […]”.

Poder-se-ia objetar que com “mão” também se pode significar “pulso” (ou “punho”); com efeito, anatomicamente falando, “mão” compreende também o pulso. Ao que respondo dizendo que, sem dúvida, sendo, anatomicamente, o pulso uma parte da mão, pode tomar-se a parte pelo todo e dizer “mão” com intenção de compreender também o pulso; mas igualmente os dedos são parte do todo “mão”, e ninguém, na linguagem corrente, diria “mão” para significar “dedo”; diria, antes, “dedo”. Os relatos das Escrituras não foram escritos em linguagem anatômica; e, parece-me, ninguém que tivesse presenciado uma crucificação pelos pulsos teria dito “mão” em vez de “pulso”; talvez pudesse dizer até “braço”. Ademais, ainda que se admita que no grego koinḗ não havia uma palavra para “pulso” ou “punho”, tal não explica a uniformidade da palavra “mão” em todas as passagens citadas (do Novo e do Antigo Testamento), e tampouco anula o testemunho dos antigos historiadores, etc. Como quer que seja, isto são questões de menor importância.

5. Ademais, os santos estigmatizados (ou estigmáticos) sempre apresentaram as chagas na palma das mãos. Quanto a isto, poder-se-me-ia objetar que os estigmas têm significado místico, e não histórico; e, com efeito — o objetor poderia acrescentar —, os santos estigmatizados apresentam as chagas de Nosso Senhor de maneiras ligeiramente diferentes umas das outras. Ao que respondo dizendo que, se assim é, ou seja, se o místico não é necessariamente histórico, o que obstaria a que se tivessem visto estigmas nos pulsos? Ao que tudo indica, nada obstaria. Em verdade, parece ser bastante conveniente a precisão histórica dos estigmas. Ora, se historicamente a Crucificação se deu pelos pulsos, por que nunca se viram estigmas (legítimos) neles, mas sempre nas mãos? Ademais, não teriam os pulsos também alguma significação mística? (Curiosamente, depois da publicação do livro de Barbet, houve quem tentasse passar por santo estigmatizado falsificando chagas nos pulsos.)

6. Ademais, a vastíssima maioria dos artistas que retrataram o Crucificado, desde os primeiros séculos do Cristianismo (salvo raras exceções, como o barroco Van Dyck) retratam-No como tendo as mãos transfixadas; e o mesmo deve dizer-se dos historiadores, dos Doutores, dos estudiosos da matéria, etc.


§III
Respostas aos argumentos de Barbet, e conclusão


7. Vejamos, agora, como se deve responder a cada um dos argumentos levantados por Barbet:
1) Lembremo-nos que o primeiro argumento de Barbet dizia respeito ao fato de que o Sudário mostra o ferimento no pulso, e não na mão. A isto deve responder-se que a imagem do Sudário mostra apenas a saída do ferimento, não a entrada, e em apenas uma das mãos. Ademais, deve dizer-se que o ferimento no lado do polegar da mão não corresponde ao espaço de Destot, que se localiza no lado do dedo mínimo da mão. Em outras palavras, se o Cravo tivesse, de fato, entrado pelo espaço de Destot, ele não teria saído pelo ponto que o Sudário mostra: teria saído pelo lado do dedo mínimo.
2) Depois, Barbet dizia que a mão não suportaria o peso do corpo; isto só seria possível, segundo ele, se os Cravos estivessem no espaço de Destot. Deve dizer-se, contudo, que o único experimento realizado por Barbet é inválido, e por diversas razões:
a) Porque usou apenas um braço (provavelmente gangrenado), sendo que, em uma crucificação, o peso do corpo é distribuído igualmente entre os dois braços;
b) Porque não considerou que os pés estivessem presos à Cruz, absorvendo boa parte da tensão;
c) Porque calculou mal o peso que a palma da mão consegue suportar: dependendo de onde os cravos forem fixados (veremo-lo em seguida), e levando em conta os pés — conforme o que foi dito no item “b)” acima —, a palma da mão suporta mais de 100 kg.
Ademais, o espaço de Destot não é o único lugar que suportaria o peso do corpo: há outros dois pontos suficientemente fortes. O mais plausível deles tem a entrada localizada na parte superior da palma da mão, e — admitida certa angulação do Cravo — sua saída condiz perfeitamente com o que se vê no Sudário. Este ponto é conhecido como “área Z”, e foi referido pela primeira vez em 1598, pelo Mons. Alfonso Paleotti (1531 – 1610), então Arcebispo de Bolonha (incorretamente criticado por Barbet). Acrescente-se, ainda, o fato de que os estigmas dos santos corroboram esta última possibilidade (da área Z).
3) Por fim, Barbet argumentava a respeito da aparente ausência do polegar no Sudário, causada pelo fato de que, passando o Cravo pelo espaço de Destot, danificar-se-ia o nervo mediano e o polegar se recolheria. Deve responder-se que uma seção no nervo mediano não causaria o recolhimento do polegar: antes, causaria uma paralisação; e que, ademais disso, o nervo mediano não passa pelo lado do dedo mínimo (onde se localiza o espaço de Destot), mas pelo lado oposto, ou seja, pelo lado do polegar. Quer dizer, se tivesse entrado o Cravo pelo espaço de Destot, não teria rompido o nervo mediano e, assim, não teria causado a paralização do polegar, nem muito menos seu recolhimento. Ora, no Sudário falta o polegar; mas isto se explica pelo simples fato de que, tanto em pessoas mortas quanto em pessoas vivas, a posição natural do polegar é ligeiramente recolhida na direção do interior da palma da mão, de modo que ele, o polegar, fica como escondido pelo indicador.

8. Tenho a impressão de que novidades desse tipo merecem um pouco nossa desconfiança, quoniam dies mali sunt. Como se viu, podemos — sem recorrer a novidades como as de Barbet — manter tudo tal como estava tradicionalmente e como era crido quod ubique, quod semper, quod ab omnibus — e, além disso, defender a autenticidade do Santo Sudário.


[1] Fundado principalmente no excelente livro do médico legista Dr. Frederick Thomas Zugibe (1928 – 2013), The Crucifixion of Jesus: A forensic inquiry, de 2005 (editado no Brasil como A Crucificação de Jesus: As conclusões surpreendentes sobre a morte de Cristo na visão de um investigador criminal). O Dr. Zugibe dedicou grande parte de sua vida ao estudo da Crucificação. Suas conclusões se leem no referido livro, e nos podem prevenir de não poucos embustes (como as “visões” de Katharina Emmerick, tão ricas em detalhes… falsos).  [↵]